São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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CAPA

Rodrigo Santoro

por CECILIA GIANNETTI

O homem nu

Encarregada de examinar com lupa as tantas imagens atribuídas a Rodrigo Santoro -bom moço, mau ator, talentoso, galã, corajoso, inexpressivo etc.,
etc.- escritora o vê despido desses clichês... E também de toda roupa

Vou passar mais de quatro horas conversando com Rodrigo Santoro, boa parte do tempo numa suíte do Copacabana Palace; depois, circulando pelo tradicional hotel carioca, enquanto o ator se transformará diante das lentes do fotógrafo, de hóspedes curiosos e de adolescentes em síncope semicontida ao cruzar com o astro num elevador, onde ele entrará trajando... Uma toalha branca.

Antes da sessão de fotos, Santoro vai ao closet experimentar roupas. Eu o sigo com meu gravador digital, que agora encaro enquanto ele coloca e tira calças; faço isso até ficar vesga, observando cada detalhezinho do maldito aparelho eletrônico. Desvio a vista para as opções de tênis e sapatos. Procuro infiltrações no teto. Tento de todas as maneiras não me fixar no corpo perfeito. Mas não consigo evitar uma olhadela. Então engulo um café, meio litro de água e sigo com o papo. (Com todo o respeito...)

"Sabe uma coisa que eu sempre quis fazer? Filme mudo. 'A Última Gargalhada' [F. W. Murnau], um filme que o Walter [Lima Jr.] me indicou, aguçou ainda mais essa vontade. Tenho fascinação por Buster Keaton e por Charles Chaplin. E sempre quis fazer um épico também, sobre o Brasil, colonização. E Guimarães Rosa, e tudo o mais que temos aqui..."

Ainda bem que meu gravador está registrando tudo o que ele diz perfeitamente. Porque a minha cabeça está perdida em algum ponto do metro e noventa de gente boa. Em mais de um sentido, ele pode ser definido assim.

Mesmo enquanto tem seu cabelo modelado pela equipe com pomadas e piastra (chapinha), ele fala comigo me olhando nos olhos. Sua conversa é cinema, seu corpo e sua cabeça querem ser cinema; nada sobre a sua vida pessoal sai da boca carnuda que fala sobre o trabalho de ator. Nada sobre Piovani, Jabour ou outra "ex". Nada sobre alguma possível namorada atual. Apenas responde se é fiel. "Sou. E gosto disso."

OS DESAFINADOS

Próximo ao hotel fica o antigo Beco das Garrafas -travessa carioca que, a partir de 1961, tornou-se celeiro de músicos de bossa nova prontos para exportação, como o Tamba Trio, o Bossa Três e o Copa Cinco. Este ensaio fotográfico para Serafina busca o clima de "Os Desafinados", filme de Walter Lima Jr. que estréia no final de agosto e no qual o ator interpreta um pianista que poderia muito bem ter passado pelas jam sessions do Bottle's ou do Little Club, casas noturnas do Beco cheias de feras da bossa. Teria certamente saído de uma delas para perseguir o sonho de levar seu talento a Nova York, como faz o grupo de músicos no longa de Lima Jr.

Assim que o stylist sai de cena, Santoro desalinha os cabelos cuidadosamente até que fiquem do jeito que ele sabe que "funciona"; ele repetirá esse movimento em frente a espelhos em diferentes cômodos, elevadores e cliques da câmera. Na maquiagem ele não mexe -mas nunca vou entender por que aplicar qualquer camada de base numa pele sem falhas. Num rosto sem falhas. Talvez bronzeado demais? De qualquer maneira, irretocável. O que vocês esperavam? O Quasímodo?

Pela bela estampa e o currículo crescente de participações no cinema estrangeiro, Rodrigo Santoro é o ator brasileiro mais cobrado a "mostrar serviço" -em grande parte pela nossa imprensa especializada, que mal espera o lançamento de outro filme gringo com ele no elenco para fazer a costumeira aposta: quantas frases lhe darão em seu próximo longa fora do Brasil? Duas, três?

"Eu nunca alardeei que iria viajar para fazer filme fora", diz. "Eu não caçava isso. Carreira no exterior era algo que nem passava pela minha cabeça."

Rodrigo apenas começara a fazer cinema, o que, há cerca de dez anos no Brasil, ainda era um desejo de muitos, com oportunidades bastante escassas. Era apenas um estreante que, de repente, foi lançado ao circuito de festivais internacionais, onde seu primeiro longa, "Bicho de Sete Cabeças", de Laís Bodanzky (leia texto abaixo), teve boa receptividade. "Aquilo me bastava. Jamais imaginei que fosse render convites para trabalhos fora do Brasil. E foi assim que aconteceu. Do nada. Eu não tinha nem agente na época."

PANTERAS E SHAKESPEARE

Não precisou mesmo de agente para chamar a atenção dos hollywoodianos. Na première de "Abril Despedaçado" (de Walter Salles), no Festival de Veneza, em 2002, uma diretora de elenco norte-americana foi atrás de Rodrigo assim que subiram os créditos na telona: "Gostei muito do seu trabalho, quero seu contato para uma participação pequena, mas divertida", disse. Trocaram telefones e Rodrigo logo se esqueceu daquilo; voltou ao Brasil e fez "Carandiru", de Hector Babenco, surpreendendo no papel de um travesti. Foi quando recebeu o telefonema pelo qual já não esperava mais: "Vamos fazer a seqüência de "As Panteras" e tem uma "cameo" [participação especial], você entra e sai e pronto". Disseram-lhe ainda que o trabalho tinha a ver com surfe e motocicletas. Santoro começou a rir ao telefone. Anda de moto desde moleque e adora surfar.

"Não fui fazer 'As Panteras' achando que estava indo fazer Shakespeare", diz. Isso não o livrou da patrulha crítica, que fez render muita chacota em torno da mudez de seu personagem. "Quando isso começou [com 'As Panteras'], não entendi qual era o problema. Eu me perguntava: 'Ué, que é que tá acontecendo? Que é que eu fiz de errado? Xinguei a mãe de alguém?'"

Os patrulheiros também já haviam tentado jogar areia em sua atuação em "Carandiru", insinuando que o papel de travesti era uma estratégia do ator para quebrar sua imagem de galã de TV. Santoro ainda parou para pensar se valia considerar o comentário. "Cheguei à conclusão de que não. Eu não construí uma imagem de galã, portanto não tinha que me preocupar em quebrá-la. Eu construo personagens."

DIETA DA ALFACE

Sigo o ator até a piscina preta do Copacabana Palace, no terraço, onde ele fará uma seqüência de fotos que resultará em outro episódio marcante para o tipo de fêmea que ainda pretende copular e conviver com algum outro elemento do sexo oposto. É quando ele sai da piscina vestindo calças brancas, molhadas, transparentes, reveladoras e segurando um charuto, que me entrega, jeito de moleque: "Ah, 'cê' gosta? Tá babado mas tá limpinho". Nas mãos de Santoro, o charuto é um charme; nas minhas, pareço uma mãe-de-santo. That's star quality, baby.

Preocupação com o corpo perfeito? Apenas se um filme como "300" exigir. Ou um trabalho para a TV como a série "Hoje é Dia de Maria", em que viveu um mendigo inspirado em Dom Quixote. "Tive de perder 11 quilos, o que pra mim foi demais porque eu já não tinha muito o que emagrecer. Na dieta muito rigorosa, meus sentidos ficaram muito aguçados. Eu me lembro de chegar ao refeitório e sentir de longe o cheiro da alface -e pra mim alface já era... 'UAU!' É de chorar, né? Eu tinha de me contentar com o que podia comer, que era aquela alface. Muita alface. E um limão por dia. Não peguei uma gripe!"

Para fazer o Joaquim de "Os Desafinados", diz ter cultivado "uma barriguinha" (que procurei com afinco, mas não consegui encontrar nem no closet nem no filme, que, aliás, lança novo fetiche em sua carreira: um look 60's irresistível -o primeiro, ao menos para mim, foi Santoro vestido de frei em "Hilda Furacão").

Walter Lima Jr. confiava desde o princípio que Santoro tentaria se superar: "Ele é minucioso e me emocionou em cena. Não foge da raia, é uma pessoa fiel. Se não fosse, não conseguiria descobrir o pianista dentro dele".

Rodrigo correu atrás: "Como eu poderia fazer um pianista se não tocasse piano?". Não tocava nada do instrumento antes de "Desafinados" e enfrentou, por quase dois meses, quatro horas de aulas diárias. "Com o Itamar Acieri. Faço questão de dizer o nome das pessoas que me ajudam." Descartou logo a idéia de planos fechados em mãos profissionais. "O personagem saiu dali. O Joaquim saiu daquela busca ao piano."

DE CUECA NA PISCINA

O próximo projeto de Rodrigo é cá pras nossas bandas mesmo, produção nacional: filmará "Heleno", com José Henrique Fonseca, sobre as aventuras do jogador de futebol -e boêmio encrenqueiro- Heleno de Freitas, que jogou no Fluminense e no Botafogo entre as décadas de 30 e 40.

Rodrigo está na fase de que mais gosta em seu trabalho, quando pesquisa e observa "sem julgar". "Depois disso, é um esforço de introspecção, solitário, de estudo e imaginação, de concentração; é você com você", diz.

E, ali, era eu comigo, a tarde toda, tentando evitar heroicamente manjar Santoro de cueca (não, não era samba-canção), Santoro de toalha, Santoro saindo da piscina com roupas transparentes coladas ao corpo. E pensando: não tem escândalo, bebedeira, quebra-quebra nem fofoca. O cara é o Dalai Lama. É isso mesmo?

"Infância pra mim foi em fazenda [nasceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro], subindo em árvore, brincando ao ar livre. Com amigos na adolescência, tomei uns porrezinhos, mas nada pra se falar 'uau!'. Não faz parte da minha personalidade. Nós éramos muito tranqüilos. Tocávamos violão em torno de fogueira..."

Amigo de Santoro desde 1997, quando se conheceram nas gravações da novela "O Amor Está no Ar", o ator Eriberto Leão explica a dinâmica da dupla e confirma o lado "frei" de Santoro: "Nossa amizade não é dessas de sair pra balada. É espiritual, ideológica". Já o colega Marcelo Serrado é compadre: Santoro é padrinho de Catarina, filha de Marcelo e da atriz Rafaela Mandelli. Mesmo quando passa muito tempo sem estar com Rodrigo, por conta do trabalho, sempre retomam a intimidade como se tivessem se encontrado no dia anterior, diz Serrado. "Temos uma relação de confiança muito forte, mútua, um torce pelo outro. E ele é um cara que tá sempre se colocando à prova, aceitando desafios."

Agora, a "receita de bolo" para quem está de olho nele (rá, boa sorte!). Rodrigo, o que o leva a confiar em uma mulher? "O caráter." Como você investiga isso? Quanto tempo leva? "Varia de pessoa pra pessoa. Eu sou a favor da transparência. Não sou de fazer tipo; já trabalho com personagens constantemente, então não costumo vestir um personagem, sou quem sou e me abro pras coisas assim." Falar de sua vida afetiva? "Nem pensar. É uma opção que fiz há muito tempo e não volto atrás. É o mínimo que peço para resguardarem."

"Ele calou a boca de todos" Por Laís Bodanzky

Tive duas surpresas ao encontrar Rodrigo pela primeira vez. Para começar, surpreendeu-me sua altura. Como um menino grandão daquele conseguia abstrair o seu tamanho e expressar tanta fragilidade como ator? Por recomendação de Paulo Autran, que contracenava com Rodrigo em "Hilda Furacão", assisti a alguns capítulos da minissérie (que foi ao ar em 1998) e vi um ator cinematográfico -mesmo na televisão ele se preocupava com os detalhes. Me chamaram a atenção especialmente a delicadeza do seu olhar e a sutileza de sua expressão corporal. E nunca podia imaginar que ele fosse tão alto.

A segunda surpresa foi a inteligência e a maturidade com que ele, já aos 22 anos, conduzia a sua carreira. "Bicho de Sete Cabeças" foi o meu primeiro longa, e também o primeiro trabalho do Rodrigo no cinema. Ele recusou outros 13 roteiros e optou por um filme ardido de uma diretora iniciante. Seguro, mas com perfeita noção de seus limites, ele estudava muito, não tinha preguiça.

Sua aposta nada confortável foi uma virada na carreira: na estréia de "Bicho..." no Festival de Brasília, antes de o filme começar, quando a equipe subiu no palco e foi anunciado o nome do Rodrigo, a platéia, sem titubear, vaiou-o intensamente. Ele não reagiu, não quis falar. Com o filme na tela e seu trabalho estampado, ele calou a boca de todos. Quando a sessão terminou, ele recebeu o maior aplauso que já tinha recebido na vida até aquele momento. Foi muito emocionante.

Rodrigo adora a sua profissão e corre atrás de trabalhos difíceis, interessantes, que buscam o desafio. Boa parte do resultado do trabalho dele é talento, mas outra boa parte é suor.

Assim também, com muita personalidade e intuição apurada, ele cuida da sua carreira, decide cada passo de sua vida. Quando o "Bicho" começou a ser exibido fora do Brasil, eu ouvi várias vezes o comentário: "Está nascendo um ator". E de fato estava.

Agora que ele não é mais um menino, aos 32 anos, é muito bonita a maneira como as marcas do rosto dele vão tirando a ingenuidade de adolescente e em seu lugar nasce um homem, com mais experiência, paixão pelo que faz e ainda muito bonito. Não consigo pensar em combinação mais vencedora do que essa."

PS: Rodrigo, você é muito bacana, mas arruinou a vida sentimental de muita gente durante aquela troca de roupas. As testemunhas jamais serão capazes de ver outro homem só de cueca sem soltar gargalhadas ou um suspiro nostálgico.

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