São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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ENSAIO

As lentes de Sebastião Salgado revelam lugares quase intocados da Terra

por IARA CREPALDI

IDADE DA PEDRA

O fotógrafo Sebastião Salgado viaja há seis anos pelo planeta em busca de formas de vida primitivas; a seguir, apresenta imagens de "Gênesis", seu último grande projeto, Com exclusividade para Serafina

QUARTA, 13/1/10, 12h30
Sebastião Salgado telefona –um ano e meio após o primeiro pedido de entrevista feito por Serafina– para saber se "pode ser amanhã de manhã, às 8h". Explica que tem uma reunião às 10h, voa para o Espírito Santo às 15h, depois para Paris e, na sequência, para a África, "para passar um tempinho com os pigmeus". Marcamos então para o dia seguinte, no hotel onde ele está hospedado, na avenida Paulista.

QUINTA, 14/1/10, 8h
No horário marcado ele está na recepção, de calça e camisa azul, caneta no bolso e a cabeça devidamente raspada –como faz diariamente, mesmo quando está na Patagônia ou nas ilhas Galápagos, com seu barbeador elétrico recarregado com energia solar.
A maioria das pessoas pelas quais passamos conhece o homem e seu trabalho, mas ninguém reconhece a fisionomia de um dos fotógrafos mais respeitados do mundo. Sentamos num canto, e pergunto sobre sua viagem. Sempre mexendo as mãos, Sebastião começa uma de suas longas respostas.
"Tava aqui pertinho, passei 50 dias morando num barco de 20 m e navegando pelas ilhas Malvinas, pela Georgia do Sul e pelas ilhas Sandwich [ilhas no Atlântico Sul]. Quase não vimos humanos, somente grandes populações de albatrozes, pinguins e outras aves específicas da região. Quando conseguíamos desembarcar, passávamos 15 horas andando e fotografando numa temperatura de até -12°C e com ventos de 110 km/h. Nas ilhas Sandwich [ilhas com vulcões em atividade e cobertas de gelo], tive acesso a algo grandioso, um cenário de gelo, fogo e fumaça. Imagens do início do planeta. Foi uma viagem fabulosa dentro das premissas do meu trabalho."

O COMEÇO
Em 2004, Sebastião Salgado iniciou "Gênesis", o maior projeto de captação de fotos da natureza e da humanidade de que se tem notícia. "Busco terras que permanecem iguais desde o começo da criação, humanos que representam os seres que fomos há milhares de anos." Um trabalho de oito anos, em 32 localidades, nos cinco continentes, que retrata os recantos "mais puros" do planeta, com cortes e closes feitos para aproximar o observador dos lugares e seres fotografados.
"Eu queria denunciar a destruição da natureza, mas pensei que, em vez disso, talvez fosse mais interessante mostrar o que ainda resta de mais puro no planeta e também o quanto nos distanciamos dele. Perdemos a essência da vida. Também somos bichos, todos evoluímos da mesma célula básica. Achamos que somos os únicos racionais, mas até a vegetação tem uma forma de racionalização. Nós abandonamos nossa ligação com o campo, com a natureza e estamos perdendo o planeta."
Quando a empreitada terminar, em 2012, essas imagens serão exibidas em forma de livros, DVDs, exposições. Um dos produtos derivados do "Gênesis" é um longa-metragem para o cinema, dirigido pelo amigo Win Wenders1, com trilha sonora do compositor e produtor musical Jonathan Elias2, que também será lançada em CDs.

COMO É FEITO
Em algumas de suas viagens, Sebastião é acompanhado por uma equipe de até dez pessoas, que inclui assistente, carregador pessoal, cozinheiro local (que tem acesso aos produtos típicos), intérprete, guia de montanhas (que sabe usar cordas, cruzar rios e passar por lugares quase intransponíveis) e o filho Juliano, 36 (cinegrafista que registra o making of de "Gênesis"), além de carregadores para os 50 kg de equipamento fotográfico, mantimentos e barracas para acampar.
Os meios de transporte são muitos. Helicópteros, embarcações, jipes, camelos, bicicletas, aviões, motos. "No ano passado, fizemos uma travessia de 850 km a pé pela Etiópia, em 55 dias, e usamos 16 jumentinhos para carregar nosso material. Como os animais são o único capital de seus donos, fomos acompanhados pelos 16 proprietários dos jumentinhos."
Para encarar a jornada aos 66 anos, é preciso estar em forma. "Faço muito exercício. De bicicleta, ando Paris inteira [onde o fotógrafo vive com a mulher e um dos dois filhos do casal, Rodrigo, 30, portador de síndrome de Down]. Adoro comer e adoro uma bebidinha, como todo mundo. Mas a verdadeira inteligência é a adaptação. Quando viajo, posso me alimentar quase que exclusivamente de aveia e grãos. Também levo, como dizem no interior de Minas, bala doce, o verdadeiro combustível da caminhada. Acho que a idade não é problema para ninguém, o problema é a cabeça."

A PRIMEIRA CÂMERA
Sebastião deixou o trabalho de economista na Organização Internacional do Café em 1973, para trabalhar com fotografia após viajar para a África levando emprestada uma câmera fotográfica de sua mulher, Lélia Wanick Salgado3, que sustentou a casa por alguns meses até que ele pudesse viver exclusivamente de suas fotos. "Mas não pense que eu faço dinheiro com fotografia, eu sobrevivo com fotografia", diz ele. Desde que começou a fotografar, publicou 19 livros e passou por mais de cem países.
Em 1994, Lélia e Sebastião criaram a Amazonas Images. Dirigida por Lélia, a empresa de oito funcionários localizada em Paris faz a pesquisa e a produção de todas as reportagens do fotógrafo, com ajuda de amigos e parceiros de diversas áreas (cientistas, antropólogos, escritores, músicos etc.) no mundo todo. Eles descobrem as histórias e os lugares a serem fotografados, organizam todos os detalhes das viagens e cuidam da apresentação e publicação dos trabalho de Sebastião. "Talvez seja a menor agência de fotografia do mundo, com apenas um fotógrafo."
Junto, o casal criou também o Instituto Terra, fundado em 1998 em Aimorés (interior de Minas Gerais), onde Sebastião nasceu. Eles trabalham para ajudar a região a recuperar 20% da mata nativa, formar os jovens locais como educadores ambientais, realizar pesquisas para preservação da floresta e promover o desenvolvimento sustentável no Vale do Rio Doce.
"Para mim, alguns valores são muito importantes. A ideia de comunidade, de que sou parte desse planeta, como as plantas e os outros animais. A iguana é minha prima. Eu vivo em coerência com esses valores."
Conversamos mais algumas vezes, por telefone, porque Sebastião não é um homem da tecnologia, quase não acessa a internet e dificilmente responde a e-mails.
Ele quase interrompeu "Gênesis" porque o raio-X dos aeroportos estava estragando seus filmes TRI-X, responsáveis pelo grão característico de suas fotos.
"Para não passar pelo controle eletrônico, eu andava com cartas da Kodak, tinha de falar com o diretor do aeroporto, chegar quatro horas antes do vôo, perdia vários aviões. Pensei em abandonar o projeto, mas, por sugestão de amigos, fiz alguns testes com digital e, em 2008, comecei a trabalhar nesse formato. Tive de criar uma tecnologia que se assemelhasse à que sempre usei na vida. Faço tudo em papel, não olho nada na tela. Descarregamos os cartões num computador grande, fazemos pranchas de contato para editar e daí mandamos para o laboratório refazer os negativos, com uma qualidade fenomenal. A partir desse negativo, imprimimos a fotografia outra vez em laboratório."
"Gênesis" pode ser a última grande viagem de Sebastião. Ele imagina que, até o trabalho terminar, quando estiver com 70, chegará a um limite de idade incompatível com as exigências de seus ambiciosos projetos. "Vou fazer coisas um pouco menores, mas não sei ainda o quê. De alguma forma, vou continuar, porque esses trabalhos são a minha vida."

1. "O Win [Wenders] é muito amigo da Lélia, muito amigo meu. Quando ele vai a Paris, a gente se encontra. Ele é fotógrafo também, colecionador de fotografia, tem várias fotos minhas. No mundo da imagem, você acaba tendo uma aproximação muito grande com as pessoas."

2. Jonathan Elias fez a trilha sonora de muitos filmes conhecidos. Entre eles, "Allien", "Blade Runner" e "De Volta para o Futuro". Como produtor musical e compositor, trabalhou com Duran Duran, Grace Jones e Sting, entre outros

3. Lélia Wanick Salgado, mulher de Sebastião, com quem tem dois filhos, Juliano, 36, e Rodrigo, 30. Arquiteta, ajuda na concepção e conceitualização de todos os trabalhos do marido, cuida do projeto gráfico da maioria de seus livros e da montagem de suas exposições

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