São Paulo, domingo, 28 de junho de 2009

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FINO

Selton sem remédio

por ANA RIBEIRO

Com cara de menino fofo e dúvidas existencialistas, o ator mais obstinado do cinema brasileiro decide puxar o breque

O poder de ação do diretor de cinema é tão grande que, muitas vezes, quando os atores vão ver o filme pronto, saem aborrecidos dizendo que não foram bem aproveitados, que suas melhores cenas foram cortadas, essas coisas. Dirigindo-se ao cinema para assistir pela primeira vez a "Jean Charles", que estreou neste fim de semana, Selton Mello estava com o coração na mão. Não tinha a menor idéia do que esperar. "Durante os dois meses de filmagem, em Londres, eu estava deprimido, pra baixo e me achando mau ator, feio, com tudo ruim à minha volta. Minha alma não estava lá. Mesmo nos momentos alegres algo pairava no ar. Tinha certeza de que tivera má atuação e que isso ia aparecer no filme. E que os não atores, vários brasileiros recrutados para fazer o papel deles mesmos, não estavam segurando a onda. Quando vi "Jean Charles" na tela, foi um banho de surpresa -agradável. O filme ficou lindo e meu personagem -o próprio Jean Charles- está no tom certo. Que alívio!"

Selton Mello diz que teve sorte. Seu estado fragilizado no momento da filmagem -uma depressão que vinha de excesso de trabalho, compromissos encavalados, certa confusão na vida pessoal e uso por mais de dez anos de remédios para emagrecer (ele tem problema para controlar o peso e recorria a "bolas" antes de começar cada trabalho, para perder até 20 quilos de cada vez)- casou bem com o perfil do personagem: um estrangeiro em Londres, desprotegido, sem documentação certa, vivendo a solidão natural de estar num país que não é o seu, metido em pequenas malandragens. E, por fim, exposto à situação extrema de ser tomado por suspeito de terrorismo e morto pela polícia. "O que era a expressão de meu momento pessoal -uma enorme tristeza- aparece no filme como trabalho de ator, compenetração, uma superrepresentação."

SELTON VEZES TRÊS

Selton Mello é hoje, aos 36 anos, um dos artistas mais requisitados do Brasil: dirige cinema (lançou em novembro de 2008 seu filme de estreia, "Feliz Natal", que também produziu) e, como ator, tem feito em média dois filmes por ano (no momento estão em cartaz, ao mesmo tempo, três filmes com ele: "Jean Charles", "A Mulher Invisível" e "A Erva do Rato"). Todos rodados, segundo o ator, em meio à crise de depressão que o abateu ao longo do ano passado inteiro e se intensificou em setembro e outubro, os dois meses que passou em Londres. Além de cinema e comerciais de TV, faz teatro esporadicamente -não é muito amigo das novelas- e volta em setembro a comandar o seu "Tarja Preta", programa de entrevistas no Canal Brasil.

Em sua casa de três andares e elevador em um condomínio no Alto da Gávea, no Rio -onde vive sozinho há dez anos, à exceção da companhia de Fox e Mel, o casal de labradores que acaba de ter oito filhotes-, Selton diz que, agora, finalmente, caiu a ficha: muita dedicação à carreira, pouca à vida. "Vi que, se continuasse naquele esquema, ia morrer de estafa, estresse, loucura, insônia, remédio, 200 coisas... Eu estava doente, dodói da cabeça."

Pretende trabalhar menos, aprender a recusar convites mesmo que atraentes, dedicar-se mais à direção. Na busca por se livrar para sempre dos remédios, começou a fazer terapia, que nunca tinha experimentado. "Por burrice, eu acho. Que mal tem em se conhecer melhor?" Pretende ainda transformar sua casa no escritório da Mondo Cane, sua produtora cinematográfica, e se mudar para um apartamento mais no meio da cidade. "Estou sentindo falta de morar mais perto, de ir à padaria comprar pão, ter uma bike. Isso tudo tem a ver com o Rio e estou perdendo totalmente..."

COMPLEXO DE FORMIGUINHA

Selton não é do Carnaval, não vai à praia e, ainda hoje, depois de mais de 20 anos morando no Rio, seu time do coração é o São Paulo, homenageado até com pôster na parede da sala. Mas diz que adora o vento que sopra no Rio. "Gosto de olhar para o horizonte. Mesmo não indo à praia, é ótimo que ela esteja ali. Sempre que tenho a opção de ir a qualquer lugar pelo caminho da praia, é esse que escolho. Vou olhando o mar e ouvindo um som, faz bem para a cabeça."

Selton trabalha demais por pura convicção: se quiser decretar férias, nada de grave vai acontecer. "Não tenho um grande estilo de vida para manter. Não preciso de casa no campo, meu carro não é do ano, não sinto falta de nada. Meu sonho de consumo é uma bicicleta. Posso, tranquilamente, ficar à toa por um bom tempo."

Difícil é lutar contra seu "complexo de formiguinha". Nascido em Passos (MG), e criado em São Paulo, onde viveu até os 12 anos, na infância o primogênito de Selma e Dalton (daí o Selton) comia em um pratinho de criança, daqueles com historinha no fundo. Ele se lembra de engolir o arroz com feijão e ver surgir aquela que era a "sua" fábula: "A Cigarra e a Formiga". "A cigarra cantava e tocava o seu violãozinho enquanto a formiga carregava folhinha. Quando chegava o inverno, a formiga estava tranquila e a cigarra morrendo de frio. 'Me ajuda?' 'Ué, mas você não trabalhou, ficou cantando o verão inteiro...'", lembra-se ele. Selton absorveu a lição. Começou a trabalhar ainda menino, como cantor mirim em programas de auditório, aos nove anos fez a primeira novela e estava definida sua carreira de ator.

Com 24 filmes no currículo, marca impressionante para um ator brasileiro da sua idade, ele exagerou no carga de folhas e caiu em um buraco. "Esse sou eu, um tremendo formigão."

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