São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2010

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ÍCONE

Ao Mestre Noel

por RICARDO VAN STEEN

No centésimo aniversário do nascimento  do filósofo do samba, uma homenagem à vida intensa e à generosidade

Dizem que o sol não brilha para todos, principalmente no mundo artístico. Para se alcançar o estrelato não bastam talento e dedicação, é preciso também ter a sorte de estar com a ideia certa, no lugar certo e no momento certo.
O músico carioca Noel Rosa, que viveu no Rio de Janeiro no início dos anos 30, foi um desses caras de sorte. Emplacou seu primeiro sucesso, "Com que Roupa?", antes de chegar aos 20 anos. E aos 22 já ganhava os dez primeiros lugares do concurso de sambas de Carnaval! Tinha tanto talento que acabava convidado para fazer de tudo: compunha, cantava, era arranjador, criava jingles publicitários, trilhas para cinema, fez até uma ópera. Aos 26 anos já acumulava mais de 250 músicas e deixou tantas lembranças, que, mesmo quase um século depois, seus biógrafos conseguiram forjar 800 páginas de causos, passagens e lendas a seu respeito.
Além de ser bom filho, bom aluno e ótimo contador de piadas, Noel tocava muito bem o violão. Suas criações eram interessantes, tanto pela insólita maneira de contar o dia-a-dia da cidade, espirituosa e mordaz, quanto pela levada, muito diferente, que ele obteve combinando os metais e cordas usados nos saraus das casas de família, nos teatros e cabarés, com o ritmo do rufar dos tambores, que ele ouvia desde a juventude, trazidos pelo vento dos morros para a cidade. As Pastorinhas, "Conversa de Botequim", "Feitiço da Vila", os sambas de Noel encantavam, aproximavam brancos, negros, velhos, jovens, ricos, pobres e... atraíam mulheres. Noel gostava tanto que se dava ao luxo de manter até quatro relacionamentos amorosos ao mesmo tempo.

SORTE E AZAR
Mas essa coisa de sorte e azar é mesmo pra gente desconfiar. Mesmo com tantas oportunidades e acertos, Noel também foi um azarado daqueles. Já no nascimento a vaca quase foi foi brejo. Teve que ser retirado à força da barriga de sua pobre mãe com a ajuda de um alicatão enorme de ferro, solução truculenta que lhe rendeu um queixo torto pra vida toda. Aos 15 anos percebeu que ia ficar baixinho e feio, magrelo, com aquele nariz grande e o queixo de menos. Não se detia, arrumava virtudes para compensar. Desenhava bem, tocava bem, escrevia bem, logo cativava platéias enormes em torno de si. Com seu charme frágil e elegante atraía muitas garotas, mas bem quando encontrou o amor de sua vida, a dançarina de cabaré Ceci, não pode consumá-lo. Foi obrigado a casar com outra, Linda, uma garota inexpressiva, com quem ele passou apenas algumas horas, numa noite quente de Carnaval. A moça era sobrinha do delegado e menor de idade, não teve jeito, ou casava ou ia para a prisão.
Casou e ficou com as duas, o que não foi uma idéia muito saudável. Ele já era fraco, comia pouco pra não sujar a roupa, vivia na rua, pegando chuva e orvalho. Ganhava dinheiro na Lapa e na Cinelândia, gastava no mangue e nos morros, pagando bebida e fazendo duelos musicais com Cartola, Ismael Silva, Wilson Batista e muitos outros amigos sambistas. Se apresentava várias vezes na mesma noite, andava muito, se divertia, amava e se cansava demais. Depois de uma série de gripes mal curadas, dormindo quase todo dia fora de casa, Noel pegou (dizem que da própria Ceci, sua grande paixão) uma doença até então incurável, a tuberculose, e morreu subitamente, aos 26 anos, deixando desolados amores, amigos, familiares e milhares de outras pessoas, sem ter ideia de que se tornaria um mito, suas músicas sendo tocadas e cantadas para sempre, em muitas línguas, ao longo das gerações.

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