São Paulo, Domingo, 29 de Janeiro de 2012

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FINO

A ÚLTIMA TESOURADA

por Pedro Diniz

O estilista Matteo Amalfi, da geração de Clodovil e Dener, continua na ativa, fazendo vestidos e dando alfinetadas sob medida

"Afinal, o que você vai falar de mim?" Era o quinto cigarro que Matteo Amalfi apagava, em menos de uma hora de conversa. Seus olhos azuis assumiam um tom de desafio. "O que o senhor tem pra dizer?" Mais um cigarro. "Se falasse tudo o que já vi, você ficaria de orelha em pé."
No pequeno ateliê fincado em uma vila do bairro dos Jardins, em São Paulo, um dos grandes nomes da costura brasileira entre as décadas de 1960 e 1980 resiste aos ciclos da moda. "Até outro dia me chamavam de ícone. Mas, como nunca fui de puxar o saco de ninguém, nem telefonema recebo mais", provoca.
Ele exagera. Ainda que seu nome não esteja nas revistas, Amalfi passa o dia criando vestidos, "tailleurs" e peças de alfaiataria para "mulheres de fino trato" de São Paulo.
Mas é no passado que moram as histórias mais divertidas de sua vida. Nos anos 1960, ao lado dos estilistas Dener Pamplona (1936-1978) e Clodovil Hernandes (1937-2009), Amalfi foi parte do que os jornais da época chamaram de "guerra das tesouras". Numa espécie de ringue fashion, os três disputavam o título de maior costureiro -ninguém dizia estilista- do Brasil.
Essa "guerra" inspirou a novela "Ti-Ti-Ti" (TV Globo, 1985), de Cassiano Gabus Mendes, que ganhou um remake em 2010. Na trama, as farpas trocadas pelos personagens Jacques Leclair e Victor Valentim eram as mesmas que, na vida real, Dener e Clodovil trocavam no programa "A Grande Chance", da TV Tupi.
"A briga foi uma invenção da mídia. O 'gênio asmático' [Dener] e a 'Nega Vina' [Clodovil] fizeram questão de alimentar a loucura. Eu era um menino quando fui jogado no meio daquelas víboras", brinca Amalfi -que não revela a idade-, citando os apelidos dos antigos desafetos. "Eu era o 'anjo de Botticelli' por causa dos olhos azuis", diz, orgulhoso.

Aeromoda
Italiano, aos 13 anos acompanhou sua família a bordo de um navio numa viagem sem volta a São Paulo. Influenciado pelo pai, cursou faculdade de economia e trabalhou no escritório da tradicional família Matarazzo, onde passava o tempo desenhando roupas.
Tomou coragem para enfrentar a família e seguir seu caminho. Quando Clodovil foi demitido do cargo de costureiro da butique Signorinella -prestigiada casa de costura paulistana nos anos 1960-, a dona da empresa pediu para ver seus desenhos e, de imediato, o contratou.
Intrigas à parte, Amalfi fez mesmo uma moda diferente da dos seus concorrentes. Enquanto os outros eram do tipo "quanto mais pompa, melhor", ele pendia para a alfaiataria clássica. Entre 1980 e 1990, vestiu as aeromoças das companhias TAM e Varig e das extintas Vasp e Transbrasil.
Como a maioria dos estilistas, teve sua mentora: a empresária Gabriella Pascolato, fundadora da tecelagem Santaconstancia e mãe da empresária e consultora de moda Costanza Pascolato.
"Numa edição da Fenit [Feira Internacional da Indústria Têxtil, evento de desfiles em que nomes importantes da moda exibiam suas coleções], Gabriella veio me apresentar o [estilista italiano] Valentino. Olhei para aquela cara arrogante e virei o rosto. Os costureiros europeus sempre esnobaram os daqui, que até hoje estendem o tapete vermelho para eles", diz Amalfi.

Musas das novelas
O gênio forte e a "sinceridade excessiva" afastaram o estilista da mídia e dos poucos amigos que tinha. Amalfi ganha a vida, com a ajuda da irmã Letizia, vendendo seu prêt-à-porter e uns poucos looks sob medida para uma clientela fiel.
Num de seus desfiles fechados -ele chega a fazer quatro num único mês-, na Associação Paulista de Magistrados, juízas faziam fila para encomendar uma peça da sua coleção de verão 2012. Nas araras, blusões com estampas de bicho, "tailleurs" com detalhes em renda e pantalonas.
O costureiro não entende a moda mostrada nas passarelas de hoje em dia e critica a falta de criatividade dos estilistas brasileiros. "O que é aquilo que mostram na São Paulo Fashion Week? Acho tudo muito sem graça. Eles não sabem encantar as pessoas, fazem tudo igual ao que fazíamos 20, 30, 40 anos atrás", dispara.

DE OLHO NA TV
Sentado numa cadeira do seu ateliê, decorado em estilo neoclássico, Amalfi olha para as paredes. "Lembro bem do Clodovil se escondendo em casa nas vezes em que dizia ir a Paris. Glamour não sustenta ninguém, por isso fico atento ao que se usa nas novelas."
Agora, é a perua Tereza Cristina, personagem de Christiane Torloni na novela "Fina Estampa", da Globo, que faz a cabeça das clientes de Amalfi. "Não imito a roupa da novela, faço parecido." Um vestido sob medida com sua assinatura custa, em média, R$ 2.000. "É justo. Os tecidos que uso não são dos mais caros e não engano as pessoas, como fazem por aí, dizendo que são franceses quando, na verdade, vêm da China."

Anos Dourados
a história de luxo, glamour e farpas de amalfi

ELITE FASHION
Nos anos 1970, o costureiro organizava desfiles em hotéis de luxo do centro de São Paulo, como o Hilton (acima). Na plateia, socialites disputavam convites

CONCEITO & IMAGEM
As coleções eram apresentadas como espetáculos teatrais. Acima, modelos na extinta boate Saloon, em SP, onde o estilista recriou o clima de faroeste

LÍNGUA AFIADA
As revistas reproduziam as alfinetadas que Amalfi, Dener e Clodovil trocavam. Em 1962, a "Fatos e Fotos" deu nome ao ti-ti-ti, "Guerra das Tesouras"

O SENHOR DAS MISSES
Modelo criado para o concurso de Miss São Paulo 1983. Amalfi foi responsável por vestir várias candidatas entre as décadas de 1960 e 1980


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