São Paulo, domingo, 29 de novembro de 2009

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FINA

Um café em Paris com Glória Pires

por FERNANDO EICHENBERG, de Paris

DIAS DE GLÓRIA

Um café com a atriz em Paris antes de ela experimentar a atual fase de consagração no Brasil, com prêmio de melhor atriz em Brasília e os elogios pelo papel de mãe de Lula

A disposição de Glória Pires na vida funciona na medida da intensidade de seu desejo. "Se, mesmo sem ter vontade, preciso fazer algo, darei o melhor de mim, mas não é nessa toada que eu gosto de viver. Vou sempre buscar o que fala o meu coração, o que está dentro de mim." Com ela, sob pressão, "não rola". E, se o ansiado interesse não aparecer, também não será um problema: "Por quantas coisas a gente passa na vida sem nunca ter conhecido... Não vou viver menos por isso", acrescenta, rindo.

Aos 46 anos, a mulher, mãe e atriz Glória Pires já pode dizer que viveu bastante. Se não tanto ainda em longevidade, pelo menos em imensidade. De sua primeira aparição na TV –aos cinco anos, na novela "A Pequena Órfã" (TV Excelsior)– até seu mais recente papel no cinema –como dona Lindu, a mãe de Lula, na cinebiografia do presidente da República–, Glória se impôs como uma das atrizes mais populares do país.

Mãe de Cleo Pires (27, também atriz e filha do cantor Fábio Jr.), casada há mais de 20 anos com o músico Orlando Morais, 47, com quem teve Antonia, 17, Ana, 9, e Bento, 5, Glória mora em Paris com a família desde 2008. O verbo morar, no entanto, deve ser aplicado à singularidade de uma atriz que trabalha no Brasil. Desde que se mudou para a capital francesa, já atravessou o oceano muitas vezes para, entre outros compromissos, atuar em três filmes –"Se Eu Fosse Você 2", de Daniel Filho, "É Proibido Fumar", de Anna Muylaert, e "Lula, o Filho do Brasil", de Fábio Barreto. "Foi essa loucura de vai e volta, mas fiquei tão feliz! São três filmes de estilos completamente diferentes, algo tão raro de acontecer. É o ideal de todo mundo não ficar preso a nenhum estereótipo, ter todas essas possibilidades", diz, assentada no café Carlu, com ampla vista para a praça Trocadéro, um de seus lugares prediletos em Paris, sem saber que sairia do Festival de Brasília, encerrado na última semana, com o Candango de melhor atriz.

O êxito de "Se Eu Fosse Você 2" (o filme brasileiro mais visto desde a retomada do cinema nacional, em 1995) surpreendeu a própria protagonista: "Foi esse sucesso estrondoso, graças a Deus. Que bom que se abriram essas portas, foi meio uma desencantada. Sinto que acabou o restinho de preconceito que as pessoas ainda tinham com o cinema nacional". Para Glória, o cinema brasileiro superou uma etapa e passou, finalmente, a olhar para o mercado: "Durante muito tempo, ficamos presos a uma ideia de cinema como uma coisa fechadinha numa caixa, e só aquela forma era válida. Não se levava em consideração o que as pessoas tinham vontade de ver. Falo de quem não era cinéfilo, de gente comum, que vai ao cinema para se divertir, refletir ou para chorar". Seu roteiro, no entanto, absolve a crítica especializada, que considera útil e necessária: "Não coloco o trabalho dos críticos e a patrulha no mesmo grau".

Para compor a personagem de dona Lindu, Glória teve de se basear quase exclusivamente em relatos de quem conheceu a mãe de Lula. As similitudes entre atriz e personagem foram aparecendo aos poucos: "Ela tinha a doçura e a rudeza da simplicidade, porque era uma mulher que não tinha nenhum trato social, uma mulher simples. Era uma heroína, como há tantas no Brasil. É um personagem com o qual me identifico muito, essa imagem da mulher que vai onde for e faz o que for preciso para que sua família fique coesa e andando no trilho. Eu gosto de cuidar das pessoas, sou assim com os meus amigos, é uma característica minha".

A polêmica em torno do fato de "Lula, o Filho do Brasil" ser lançado em um ano de pleito presidencial e a influência que isso pode ter na campanha eleitoral e na própria carreira do filme, ela prefere deixar para os "cientistas políticos" e "produtores" debater. Sobre o governo de verdade do seu filho de mentira na tela, a cidadã Glória procura ser mais racional do que a atriz: "Acho difícil falar de um governo, porque sabemos que não é feito por uma pessoa, e eu particularmente acho muito complicado essa mistura de partidos. É complicado entender como pessoas que defendem ideias tão opostas podem se unir em prol de alguma coisa que não seja só poder. Acho difícil falar de política no nosso caso porque são pessoas reunidas em torno de uma ideia que nem sempre é o bem comum. Na maioria das vezes, é para o fortalecimento de seu partido". Mas, no geral, ela se diz muito contente com a atual projeção internacional alcançada pelo país e, em oposição à obscuridade provocada pelo recente apagão de eletricidade, vê luz no fim do túnel: "Acho que a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, certas coisas começaram a entrar nos eixos, certas etapas começaram a ser sedimentadas para que pudessem vir as próximas. Finalmente, sinto um progresso. Aquele 'país do futuro' do qual sempre ouvimos falar, acho que está chegando".

A PRÓXIMA VILÃ
O cinema é parte importante de sua biografia –ela ainda mantém o sonho de produzir uma série de cinco documentários sobre o rio Araguaia–, mas foi por meio de outra tela, de dimensões bem menores, que a atriz afirmou e reverberou suas aptidões pelos quatro cantos do país. O diretor artístico e crítico musical Nelson Motta a definiu como "a primeira grande atriz brasileira especializada em televisão". Ela confirma o longo epíteto: "Realmente, eu me identifico com a televisão. E acho que fui a primeira pessoa a dizer que gostava de fazer televisão, que gostava de fazer novela e que havia novelas ótimas. Talvez isso tenha provocado essa junção de imagens, tenha feito isso ficar tão forte".

Em 2011, Glória Pires estará de volta às suas origens, a TV, como a vilã da próxima novela escrita por Gilberto Braga para a Globo. Foi a atriz que deu vida a uma das mais marcantes personagens más da história da telenovela brasileira, a maligna Maria de Fátima, de Vale Tudo (1988). "O que adorei na Maria de Fátima é que não era uma vilã na concepção maniqueísta de novela. As pessoas não sentiam simplesmente raiva dela, muitas concordavam com o seu pensamento. Ela tinha uma coisa humana. Faz tempo que não faço uma vilã, acho que vai ser muito legal", diz.

Seu retorno ao Brasil para começar as gravações está previsto para setembro de 2010, mas a família deverá permanecer em Paris. À parte a penosa rotina do frio – na qual, hoje, já vê até um lado charmoso-, sua adaptação à cidade foi consonante. "Isso aqui tem sido muito bom. A gente fez um 'upgrade' cultural. É muito legal o jeito que as pessoas vivem aqui, elas não são mimadas. A gente fica com a sensação de que no Brasil somos um pouco mal-acostumados. Aqui não tem mimo, cada um faz o que tem de fazer e ponto final, ninguém sente pena de si próprio como no Brasil." A cada despertar, ela confessa experimentar um "sentimento de agradecimento" pela experiência francesa. "A coisa deliciosa desta cidade, que ela propicia e da qual sou totalmente fã, é essa liberdade total. Essa coisa de as pessoas comprarem um sanduíche e sentarem numa graminha qualquer e ficarem curtindo. Acho isso uma coisa fantástica. Ninguém fica patrulhando ninguém. Todo o mundo se iguala, curte as mesmas coisas. É o piquenique, passear à toa, sentar num café, num banco de praça. Você tem liberdade, porque você não se sente ameaçado. Estou curtindo cada dia."

VOVÓ GLORINHA
Glória é uma mulher paciente. Desde cedo teve a certeza de uma vida duradoura e de poder concretizar todos os seus projetos. O amigo e colega Lauro Corona (1957-1989) a chamava de Vovó Glorinha: devagar e sempre em sua charrete. "Sou totalmente assim. Incrível como o Laurinho sacou isso em mim muito rápido. Eu não tenho essa pressa do tempo, sempre soube que iria morrer muito velha (risos). Eu não crio essa expectativa de que no ano que vem tenho de fazer não sei o que, de que enquanto não for viver não sei onde... Comigo não é assim. Confio que as coisas estão vindo, que vão chegar para mim. É um tipo de crença."

Daqui a dez anos, ela se imagina desfrutando cada vez mais da pacatez de sua fazenda nos arredores de Goiânia. "É um lugar especialíssimo. Tem toda uma história familiar do Orlando, mas é muito nosso. Quando medito, é para lá que me transporto. Quando a rotina está um pouco pesada, é para lá que eu me reporto. Sempre é lá, à beira do rio, debaixo das mangueiras."

Em seu calendário particular, uma década é um século. Sem nostalgia, movida pelas suas vontades, seu tempo é o presente: "Mesmo quando é um pouco mais difícil do que foi ontem, eu prefiro o hoje".

COLABOROU PAULO CABRAL

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