São Paulo, domingo, 29 de novembro de 2009

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'BANDE DESSINÉE'

Um painel com o melhor da HQ francesa hoje

por JOCA REINERS TERRON

QUADRADO MÁGICO

Um painel dos principais artistas das histórias em quadrinhos HOJE NA FRANÇA, o mercado de hq mais sólido da Europa

E, quem diria, o baixotinho Asterix se tornou um cinquentão em outubro. É sempre um ultraje testemunhar a passagem do tempo por meio da existência de um personagem, justamente porque nós envelhecemos e o personagem (Asterix, no caso, e também o seu cupincha Obelix) continua jovem. Salvai-nos da velhice com alguma poção, bom e velho druida Panoramix! Mas passemos para o próximo parágrafo, pois este papo já está ficando para lá de chatotorix.

Criados em 1959 pela dupla Uderzo & Goscinny (que morreu em 1977 sem testemunhar a decadência de seus enredos mordazes e finamente pesquisados, levados adiante pelo ilustrador Uderzo), os irredutíveis gauleses são apenas a cereja no creme brûlée de uma tradição centenária que passeia pelo mundo francófono desde o trabalho pioneiro do suíço Rudolphe Töpffer (1799-1846), passando pelas peripécias de "Tintin" (1929), criação do belga Hergé, também divulgador da "linha clara", escola de desenho conhecida pela limpeza dos traços dos contornos, e chegando às histórias de fantasia e ficção científica meio hippies, meio surrealistas, do grupo reunido em torno de Moebius na revista "Metal Hurlant" nos anos 1970 (tão influente a ponto de sobreviver até hoje por meio de sua filial norte-americana, a "Heavy Metal").

A tradição não para aí e continua a se expandir graças ao mercado de quadrinhos mais sólido da Europa, cujo ponto alto é o Festival Internacional de Angoulême (existente há 37 edições). Na França, a "bande dessinée" (ou "banda desenhada", como nossos irmãos lusitanos adotaram) são consumidas por toda a família. De acordo com Thomas Gabison, 35, editor de quadrinhos da tradicional Actes Sud BD, existe até mesmo certa superprodução que pode ser negativa: " No início dos anos 90, os artistas faziam suas experimentações gráficas e narrativas em fanzines. Hoje, com o barateamento dos custos de produção, publicam diretamente em livro sem a presença de editores. Há 30 anos, eram publicados na França cem álbuns por ano; há 15, em torno de 700; atualmente são cerca de 4.000 álbuns por ano."

Um erro comum cometido pela crítica é considerar as HQs um gênero destinado apenas às crianças. Não se trata disso, claro, e a atualidade pode ler histórias que mesclam erotismo, profundidade literária e experimentação (medidas em geral encontradas na literatura tradicional e não nos gibis), destinadas a um público de alto repertório e capacidade de consumo. Vamos conhecer oito entre os mais complexos criadores franceses atuais, a nata dos quadrinhos adultos da terra de Asterix, o cinquentão.

BLUTCH: O EXPERIMENTAL
O mais veterano entre os novos, Blutch (pseudônimo de Christian Hincker) nasceu em Estrasburgo em 1967. Começou a publicar ainda nos anos 80 na revista "Fluide Glacial" (reduto da geração anterior, surgida nos anos 70 e –como seu nome indica– meio congelada no tempo hoje em dia), e demorou para descobrir sua linguagem pessoal, ricamente experimental e baseada em grossas pinceladas e na exploração de narrativas mudas. Seu álbum representativo dessa conquista é "Mitchum" (publicado em fascículos a partir de 1996 e reunido em livro por Cornélius em 2005). Em 2009, recebeu o Grand Prix de Angoulême e foi escolhido como presidente da próxima edição do festival em janeiro de 2010.

De acordo com Thomas Gabison, que está feliz com a escolha de Blutch para presidir a próxima edição de Angoulême, "é um autor de estatura considerável, desconhecido do grande público e sempre em busca de uma escrita original. É o Fellini dos quadrinhos franceses".

STÉPHANE BLANQUET: O GÓTICO
Saído de um bairro pobre de Paris, onde nasceu em 1973, Blanquet começou a se auto-editar no início dos anos 1990, por meio de sua pequena editora, a Chacal Puant. Misto de Edward Gorey (ilustrador americano,1925-2000) com ator de teatro de sombras chinês, ele compõe longas histórias usando apenas silhuetas bastante sombrias. Novamente (como em Ludovic Debeurme), o clima é de pesadelo e de taras sexuais a granel.

Seu álbum mais espetacular é "La Vénéneuse aux deux Éperons" (algo como A Venenosa com Duas Esporas). O livro, de tema negríssimo e gótico até o último chocalho da medula da cascavel, é um conto de fadas que narra as desventuras de um porquinho apaixonado (para dizer o mínimo) pela criada de uma bruxa. Com sexo e escatologia aos jorros, Blanquet é a prova definitiva de que nem toda HQ é coisa de criança. Merece ser publicado com urgência por aqui.

JOANN SFAR: O PROLÍFICO
Joann Sfar (nascido em Nice em 1971) é um milagre de hiperatividade. Adepto de histórias seriadas ao modo dos quadrinhos clássicos (recebeu grande influência do belga André Franquin, criador do clássico "Spirou", dos anos 60), também adora fazer parcerias, como as praticadas com Lewis Trondheim (na cultuada série fantástica "Donjon", em progresso), David B. ("Urani", 2000) e Emmanuel Guibert ("Les Olives Noires", igualmente em progresso). No Brasil, já tivemos publicados os livros da série "O Gato do Rabino", na qual explora suas raízes judaicas, além do infantil "O Pequeno Vampiro" (ambos pela pela Jorge Zahar).

Sua produção mais recente a sair por estas praias (publicada pela Agir quase em conjunto à edição francesa da Gallimard) é a adaptação personalíssima de "O Pequeno Príncipe", o clássico da literatura infantil criado por Saint-Exupéry. O personagem não poderia ser mais adequado a Sfar, que promove o encontro da criatura com seu criador, Saint-Exupéry. O plano desse encontro, claro, só poderia ser o dos sonhos. Sfar dirigiu recentemente seu primeiro longa, a cinebiografia do cantor Serge Gainsbourg lançada em Cannes 2009, cuja estréia foi ofuscada pelo suicídio da atriz inglesa Lucy Gordon (que interpreta Jane Birkin no filme).

LUDOVIC DEBEURME: O RADICAL
Ilustrador dos mais requisitados da indústria francesa, Ludovic Debeurme, 38, é filho de um conhecido pintor e publica quadrinhos desde 2002. Autodefinido como um "mutilador de playmobil na infância", estudou artes plásticas na Sorbonne e é um dos desenhistas mais formidáveis da geração surgida nos anos 2000 –devido, talvez, à precoce formação artística fornecida pelo pai ainda na infância.

Autor de narrativas surpreendentes pelo fato de não se apoiarem na tradicional divisão de imagens por meio de linhas (os famigerados quadrinhos que dão nome ao gênero no Brasil), Debeurme atribui onirismo à sintaxe que desenvolveu, inspirada na obra do animador Roland Topor. Repletos de fetiches e perversões, como em "Lucille" (premiado com o Prix René Goscinny em 2006), seus álbuns parecem pesadelos plasmados em preto e branco. É um dos grandes nomes publicados pela radical editora Cornélius.
Permanece inédito no Brasil, a não ser por seu trabalho de ilustrador ("O Médico e o Monstro", de R.L. Stevenson, editora Ática).

EMMANUEL GUIBERT: O REALISTA
Ao contrário da rapaziada perfilada aqui, Emmanuel Guibert (nascido em 1964 em Paris) é dono de veia documental. Desenhista econômico da escola da "linha clara" francesa, depurou sua linguagem de narrador gráfico com "La Guerre d'Alan", trilogia baseada nos depoimentos do soldado Alan Ingram Cope sobre a campanha na Segunda Guerra.

Na esteira dessa ideia de promover pesquisas documentais e auxiliado pelo colorista e arte-finalista Frédéric Lemercier, Guibert produziu "O Fotógrafo, Uma História no Afeganistão" a partir das experiências de Didier Lefèvre, repórter fotográfico que registrou uma expedição dos Médicos Sem Fronteiras ao Afeganistão em 1986, quando a invasão soviética estava em curso. Misturando o depoimento em primeira pessoa de Lefèvre (que morreu em 2007) às fotografias, Guibert reflete sobre a guerra e os conflitos do Oriente Médio com um realismo profundo. Os volumes 1 e 2 foram publicados pela Conrad, que ainda deve aos leitores brasileiros o conclusivo volume 3.

MARJANE SATRAPI: A CINEMATOGRÁFICA
Nascida em Teerã em 1969, Marjane Satrapi funcionou como uma espécie de rebocador quebra-gelo da nova geração. Escrito em francês e publicado em 20 línguas diferentes, "Persépolis" (no Brasil saiu pela Companhia das Letras) representa um marco na divulgação da turma reunida em torno da L'Association, editora cujo trabalho bombou a produção de "graphic novels" franco-belga. Adaptado para o cinema de animação pela própria Marjane (co-dirigido por Vincent Paronnaud, o filme levou prêmio especial do júri em Cannes, em 2007, e foi indicado para o Oscar no ano seguinte), relata o crescimento da adolescente Marjane em Teerã (o viés da autobiografia surge de maneira importante, assim como em David B.), explorando contrastes de sua vida familiar liberal de esquerda com a revolução iraniana e a ascensão do Aiatolá Khomeini e do fundamentalismo religioso.

De acordo com a visão pessimista do editor Thomas Gabison ("talvez um tanto radical", salienta) diante da hiper-produtividade do mercado francês atual, se "Persépolis" fosse publicado agora "acredito que não seria a mesma coisa. O sucesso do livro aconteceu há 10 anos. Hoje poderia passar despercebido." Marjane recebeu por "Persépolis" o prêmio de melhor HQ da Feira de Frankfurt.

DAVID B.: O AUTOBIOGRÁFICO
Um dos responsáveis pelo renascimento da HQ francesa no início dos anos 90, Pierre-François Beauchard (nascido em Nîmes em 1959 –com a mesma idade de Asterix, portanto) é conhecido pela alcunha de David B. Além do sucesso mundial de "Epiléptico", saga familiar na qual narra a sua vida em paralelo à de seu irmão mais velho, Jean-Cristophe (acometido pelo mal do título), David B. é criador da L'Association.

"Epiléptico", com o prêmio de melhor roteiro em Angoulême em 2002 e o Ignatz de melhor artista de 2005 (o principal prêmio do mercado alternativo norte-americano), também é o álbum que balizou uma das ondas mais poderosas dos quadrinhos atuais –a das histórias autobiográficas. Atualmente, ele produz uma sequência chamada "Babel", publicada simultaneamente por editoras europeias e americanas através dos gibis do selo "Ignatz". "Epiléptico" saiu em dois volumes no Brasil pela Conrad.

CRISTOPHE BLAIN: O CAÇADOR DE AVENTURAS
Quase inteiramente dominada por histórias passadas em cenários urbanos e de fundo autobiográfico (a receita é quase sempre a mesma: doenças raras, famílias disfuncionais ou com histórias de exílio ou relacionadas a importantes episódios históricos), a produção quadrinhística contemporânea (e não somente a franco-belga) não costuma explorar aventuras de gênero. Mas sempre há a exceção à regra: Cristophe Blain nasceu em Gennevilliers em 1970 e o seu maior sucesso é uma HQ de piratas, "Isaac o Pirata" (publicada no Brasil pela Conrad em 2005).

Bem, não é exatamente preciso afirmar que "Isaac o Pirata" é uma aventura de corsários. Primeiro, porque o protagonista é um romântico pintor na pindaíba que aceita o cargo de desenhista na tripulação de um barco em destino às Américas. O que era uma empreitada comercial, porém, revela-se pirataria das brabas, e assim nosso herói é enredado em aventuras marítimo-amorosas que terminam por conduzi-lo para longe da amada deixada em Paris. Com traço que apenas na aparência estilizada lembra o cartum infantil, Blain realizou uma obra-prima de inquestionável alcance realista.

Editor da Actes Sud BD, entre os principais selos de quadrinhos franceses, Thomas Gabison, 35, é designer gráfico e livreiro, e foi levado para o meio editorial por seu companheiro Michel Parfenov, editor sênior da Actes Sud. Lá, publicou não somente autores da nouvelle vague franco-belga, mas expressões de todas as latitudes como o norte-americano Anders Nielsen e o italiano Gipi. Sua visão do mercado francês atual, entretanto, não é das mais otimistas.

Acredito que vivemos a verdadeira Era de Ouro dos quadrinhos, com alguns dos artistas mais importantes da história em plena atividade. Como você enxerga a produção de outros países europeus, como Itália e Espanha?
Você tem razão, mas acho que essa Era de Ouro entrará em declínio se os editores não tomarem cuidado. Vivemos hoje uma superprodução com qualidade cada vez menor e os grandes editores publicam de tudo sem se preocupar com o risco de aborrecer o público. Sou mais otimista em relação àquela mesma efervescência que percebo em países que não têm cultura de quadrinhos, ou que perderam, ou que estão em vias de construí-la, como Romênia, Rússia, China, Israel, México, Brasil, Eslovênia, Portugal. Em todos esses países há jovens e promissores autores que daqui a 15 anos poderão ter contribuído com nova linguagem para suas respectivas culturas.

O mercado francês de quadrinhos é dos mais sólidos do mundo. É surpreendente ver pessoas de todas as idades nas livrarias especializadas. Existem dados a respeito do número de leitores na França?
A França e a Bélgica têm uma cultura centenária de quadrinhos que, após os anos 60, nunca deixou de atingir o público adulto. Creio que esse desejo de criar obras literárias para os tempos atuais acabou contribuindo com certa nobreza para a "bande desinée". Um bom livro pode vender centenas de milhares na França, mas uma boa média de vendas gira em torno de 50 mil exemplares.

Há uma distinção entre os quadrinhos franceses e os americanos. A presença da sexualidade meio perversa nas obras de Blanquet e Ludovic Debeurme é algo que só poderia se originar na França?
No mundo todo e ao mesmo tempo, houve a mesma efervescência. O mundo dos quadrinhos é pequeno e todos se conhecem. Tudo começou depois do surgimento de editoras que foram criadas por autores que não conseguiam ser publicados no final dos anos 80. Isso fazia parte de uma cultura que se espalhava pelo mundo. Art Spiegelman publicava a revista "Raw", onde conhecemos autores japoneses como Yoshiharu Tsuge. A Futuropolis publicava os clássicos norte-americanos, e podíamos conhecer pela Casterman ou na "Metal Hurlant" mestres argentinos como Alberto Breccia ou Muñoz e Sampayo.

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