São Paulo, domingo, 31 de Julho de 2011

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CAPA

As Obsessões de Deborah

por Adriana Ferreira Silva, do Rio

Aos 50, a coreógrafa brasileira mais pop tem um novo espetáculo, um grande amor e um imenso desafio

Deborah Colker parece doida.
A carioca desafiou limites físicos e fez bailarinos escalarem cenários ou dançarem entre vários obstáculos.
Graças à ideia fixa de explorar a relação entre movimento e espaço, sua companhia fez da dança um fenômeno pop e de Deborah a coreógrafa mais famosa do Brasil.
Em 2001, ganhou o Prêmio Laurence Olivier (o Oscar das artes cênicas britânico) e foi a primeira mulher a dirigir um espetáculo da megacompanhia canadense Cirque du Soleil, "Ovo", em cartaz atualmente em Chicago (EUA).
Agora, busca simplicidade. Seu balé "Tatyana" narra uma história com começo, meio e fim, baseada no romance "Evguêni Oniéguin", do russo Aleksandr S. Púchkin (1799-1837).
No primeiro ato, os bailarinos encenam a história de amor com passos precisos sobre galhos de 30 cm de uma árvore gigante, construída pelo cenógrafo Gringo Cardia.
Após o intervalo, "flutuam" sobre uma plataforma imperceptível, enquanto grafismos projetados num telão criam um efeito 3D. A trilha sonora mescla Kraftwerk e Igor Stravinski.
As mulheres da companhia se alternam no papel de Tatyana, a moça tímida do campo que se apaixona por Oniéguin.
Os quatro bailarinos encarnam, cada um em uma cena, o papel de Oniéguin, o rapaz cosmopolita que rejeita a protagonista. Deborah está em cena com um papel masculino, o do autor da obra, Púchkin. Para poder botar a trupe em vários papéis e acentuar os efeitos da maquiagem, precisava igualar os looks. As mulheres ganharam cabelos pretos curtíssimos e sobrancelhas descoloridas. A decisão levou algumas às lágrimas: "Mas quando começam a reclamar, lembro que quem manda aqui sou eu!".
"Tatyana" estreou no Festival de Teatro de Curitiba, em abril, e chega a São Paulo em setembro, no Teatro Alfa. No Rio, fez temporada em maio no suntuoso Theatro Municipal.
No primeiro dia, a plateia lotada listava gente como Fernanda Montenegro, Lenine, Marieta Severo, Silvia Buarque de Hollanda, Fernanda Abreu, Chico Diaz e Fernanda Lima.
"A Fernandona [Montenegro] diz que a companhia faz teatro, não dança", conta. "Ela assiste a todos os espetáculos."
Deborah Colker explica o estudo metódico para "Tatyana" desenvolvendo os argumentos em longos raciocínios, que passam da dança à psicanálise, história, ciência, música, literatura.

ENERGIA
Sua voz se alterna entre tons delicados, mas é quase sempre estridente. Ao descrever cenas de "Ovo", grita.
E se irrita quando comenta as críticas negativas, que comparam suas peças ao atletismo ou ao circo. "A dança era menosprezada pelo mundo pop. Minha companhia ajudou as outras a existirem." Deborah gosta de brigar. No Cirque du Soleil, ganhou o apelido de "little fighter" (pequena lutadora) –ela tem 1,61m; 50 kg.
"Eles são machistas, se reúnem para falar quem comeu quem. Quando você entra para um clube de machos, passa a se comportar como um deles."
"Deborah é enérgica ao ponto de ser insuportável", conta seu terceiro marido, o músico Toni Platão. "É uma mãe judia, como a do filme 'Contos de Nova York', de Woody Allen", diz ele, lembrando da perso-nagem que se transforma num fantasma e passa a perseguir o filho pelas ruas de Manhattan.
De fato, ela descende de uma tradicional família judaica. Os avós das duas partes deixaram a Rússia após a Primeira Guerra e se instalaram no Rio.
Os pais, ambos formados em arquitetura, matricularam os três filhos, dois meninos e a caçula, Deborah, em uma escola judaica no Rio de Janeiro.
E cultivaram na garotinha sua primeira obsessão, o piano, aos cinco anos. "Os judeus têm um lado bom, que é também ruim, de ter de ser sempre o melhor no que faz", explica.
Para a elétrica Deborah, ser boa somente na música não bastava, e ela passou também a jogar vôlei. Chegou a fazer teste para a seleção carioca.
Largou tudo aos 16 anos. "Queria fumar maconha, namorar, ouvir reggae, me divertir."
A dança lhe salvou da depressão. Aos 17, se dividia entre balé, sapateado, dança moderna e psicologia, na PUC.
Aos 18, entrou em contato com o teatro e virou diretora de movimento no Grupo Coringa. Sua função era preparar os atores antes da apresentação.
Até que se deparou com Dina Sfat em 1984, na montagem "Irresistível Aventura",com José Mayer e direção de Domingos Oliveira.
"Tinha terminado e estava indo embora. Dina me chamou e disse: 'Não vai ficar para ver o resultado do seu trabalho?'. Depois dessa bronca, virei uma escrava." Foi ali que descobriu sua obsessão mais duradoura, o estudo do movimento.
Nessa época, conheceu Cafi, fotógrafo 12 anos mais velho, e se apaixonou. Tiveram dois filhos: Clara, 27, coordenadora do Centro de Movimento Deborah Colker, e Miguel, 24, produtor.
Nos dez anos juntos, foiintroduzida ao povo do rock. Dirigiu "Básico Instinto" para Fausto Fawcet; conduziu Fernanda Abreu em clipes. "Abominava o mundinho da dança, um pessoal que fazia mostra pro seu próprio umbigo."
Aos 33 anos, decidiu montar a Deborah Colker Companhia de Dança, e reuniu uma equipe que não tinha ninguém do cenário tradicional.
Gringo Cardia era o bambambã dos videoclipes; Berna Ceppas era assistente do diretor musical. A trilha sonora do primeiro espetáculo, "Vulcão", de 1994, foi feita no estúdio de Dado Villa-Lobos, então guitarrista do Legião Urbana.
O atual diretor executivo da companhia, João Elias, também estava lá. Era produtor de TV, e foi por ele que Deborah morreu de amores. Foi seu segundo casamento, durou 11 anos. "Com o Cafi, tive filhos. Com o João, estabeleci minha carreira."

GRANDIOSIDADE
Deborah refaz seu percurso para explicar por que elaborou tantas montagens grandiosas. Queria reunir várias influências. Trouxe o vigor do esporte, a cultura do videoclipe e a música pop para seus espetáculos.
Na vida pessoal, no entanto, dispensa luxos básicos, como usar roupa nova nas estreias ou nas festas de aniversário. "Gosto de tomar cachaça num pé-sujo de esquina no Jardim Botânico, perto de casa." Suas vaidades são pintar e cortar os cabelos. "Não faço a unha. Sou viciada em café e maionese. Mas faço balé todo dia. O Toni [Platão] é mais novo, tem 48 anos. É bonito. Preciso me garantir."

NOVA OBSESSÃO
Há quase dois anos, Deborah mergulhou em uma nova obsessão, e essa não tem nada a ver com a vida profissional. Seu primeiro neto, de um ano e dez meses, nasceu com uma doença genética rara, epidermólise bolhosa, causada pela ausência de uma proteína fundamental na ligação entre derme e epiderme.
Em busca da cura, a avó virou especialista no assunto. Visitou centros de estudo nos Estados Unidos e se tornou "embaixatriz" da ONG Huma (de humanidade), organização que busca o desenvolvimento tecnológico para pesquisas de terapia celular.
Pretende buscar apoio para desenvolver pesquisas com a presidente Dilma Rousseff, de quem é fã. "Ela está anos à frente de Lula."
Aos 50, a coreógrafa mais novidadeira do Brasil vive o auge de sua carreira e um enorme drama pessoal. Enfrenta as duas batalhas com o movimento que se tornou sua marca registrada: subindo pelas paredes.


Dança dialoga com o público

KATIA CALSAVARA colaboração para a Serafina

A dança se transforma diante da plateia. Assim como o teatro, está sujeita a riscos e falhas. O esquecimento de um passo ou dramas técnicos, como luzes e músicas nas horas imprecisas, podem acontecer e interferir no trabalho. Essa iminência do erro aparece de forma vibrante na obra de Deborah Colker, que não teme os riscos, ao contrário, parece convidá-los. Ela e seus bailarinos já dançaram presos por cordas, já giraram em rodas gigantes, já deram piruetas entre dezenas de vasos espalhados pelo palco.
"Ninguém precisa se obrigar a entender de imediato as metáforas corporais propostas pelo artista. Como espectadores, nosso corpo recebe essas informações de algum modo", diz a pesquisadora e ensaísta Cássia Navas, professora do Instituto de Artes da Unicamp.
A conexão com a plateia que Colker estabelece é muito eficaz. Com talento inegável e um elenco de bailarinos vigorosos e bem preparados, ela versa sobre temas próximos do público, como relacionamentos amorosos, fábulas familiares e esportes.
Não são assuntos pouco abordados na arte, mas a forma como o jogo é criado em cena é impactante, em uma simbiose de cenários, figurinos, música e corpos que voam, se chocam, giram e alimentam nossos olhos.
"Não é à toa que o trabalho dela é reconhecido dentro e fora do país", afirma a pesquisadora. O acabamento rigoroso de seus balés a fizeram conquistar plateias e críticos internacionais. Não é estranho que seja a primeira artista brasileira convidada para uma parceria com a trupe canadense Cirque du Soleil.
Coreografado e dirigido por Colker, o espetáculo "Ovo" estreou no Canadá e ainda não tem data prevista para os palcos brasileiros. Fato é que deverá ficar cerca de 15 anos em cartaz, excursionando pelo mundo. Para ela, o chão está muito longe do limite, e assistir a qualquer um de seus espetáculos é uma experiência de troca garantida com a dança.

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