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sabor do saber
A filosofia ocidental é obcecada pela questão do ser. A oriental, pela questão do vazio, do nada. É no vazio da jarra que se colocam flores.
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Ouvir para aprender
Rubem Alves
colunista da Folha
De todos os sentidos, o
mais importante para a
aprendizagem do amor,
da vida em conjunto e da cidadania é a audição. Disse o escritor
sagrado: "No princípio era o verbo". Eu acrescento: "Antes do verbo, era o silêncio". É do silêncio
que nasce o ouvir.
Só posso ouvir a palavra se
meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve.
Sabem disso os poetas, esses seres
de fala mínima. Eles falam, sim
-para ouvir as vozes do silêncio.
Veja esse poema de Fernando
Pessoa, dirigido a um poeta: "Cessa o teu canto!/ Cessa, que, enquanto/ O ouvi, ouvia/ Uma outra voz/ Com que vindo/ Nos interstícios/ Do brando encanto/
Com que o teu canto/ Vinha até
nós.// Ouvi-te e ouvi-a/ No mesmo
tempo/ E diferentes/ Juntas cantar./ E a melodia/ Que não havia./
Se agora a lembro,/ Faz-me chorar". A magia do poema não está
nas palavras do poeta. Está nos
interstícios silenciosos que há entre as suas palavras. É nesse silêncio que se ouve a melodia que não
havia. Aí a magia acontece: a melodia me faz chorar.
Não nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa pára por
não haver o que dizer, tratamos logo de falar qualquer coisa, para pôr
um fim ao silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio
sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados naquele cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro?
Ou olhamos para o chão? Nada temos a falar. Esse silêncio é como se
fosse uma ofensa. Aí falamos sobre o tempo. Mas nós dois bem sabemos
que se trata de uma farsa para encher o tempo até que o elevador pare.
Os orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano, o nome
do filme em que vi esta cena é "Aconteceu em Tóquio". Duas velhinhas
se visitavam. Por horas ficavam juntas, sem dizer uma única palavra.
Nada diziam porque no seu silêncio morava um mundo. Faziam silêncio não por não ter nada a dizer, mas porque o que tinham a dizer não
cabia em palavras. A filosofia ocidental é obcecada pela questão do ser.
A filosofia oriental, pela questão do vazio, do nada. É no vazio da jarra
que se colocam flores.
O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A prática educativa tradicional se inicia com a palavra do professor. A menininha, Andréa, voltava do seu primeiro dia na creche. "Como é a professora?", sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: "Ela grita...".
Não bastava que a professora falasse. Ela gritava. Não me lembro de
que minha primeira professora, dona Clotilde, tivesse jamais gritado.
Mas me lembro dos gritos esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o espaço
de medo. Na escola, a violência
começa com estupros verbais.
Milan Kundera conta a estória
de Tamina, uma garçonete: "Todo mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo? Não sei... O que conta é que
ela não interrompe a fala. Vocês
sabem o que acontece quando
duas pessoas falam. Uma fala e
outra lhe corta a palavra -"É
exatamente como eu, eu...'- e
começa a falar de si, até que a primeira consiga, por sua vez, cortar
-"É exatamente como eu, eu...".
Essa frase parece ser uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engodo. É uma revolta brutal contra uma violência
brutal: um esforço para libertar o
nosso ouvido da escravidão e ocupar, à força, o ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem
entre os seus semelhantes nada
mais é do que um combate para
se apossar do ouvido do outro".
Será que era isso o que acontecia na escola tradicional? O professor se apossando do ouvido do
aluno (pois não é essa a sua missão?), penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a força
da autoridade e a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido silencioso do aluno há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a
razão por que há tantos cursos de oratória, procurados por políticos e
executivos, mas não de "escutarória". Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.
Todo mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os
adultos procuram um psicanalista, profissional pago do escutar.) Toda
criança também quer ser escutada. Encontrei, na revista pedagógica
italiana "Cem Mondialità" a sugestão de que, antes de iniciarem as
atividades de ensino e aprendizagem, os professores se dedicassem por
semanas, talvez meses, a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio
das crianças, há um programa de vida: sonhos. É dos sonhos que nasce
a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para
transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças
para que a sua inteligência desabroche.
Sugiro então aos professores que, ao lado da sua justa preocupação
com o falar claro, tenham também uma preocupação com o escutar
claro. Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta
bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar...
Rubem Alves, 71, que um menininho descreveu como "um homem que gosta de ipês amarelos", e
um outro, como "um velhinho que conta estórias", relê bem devagar o "Livro do Desassossego", de
Bernardo Soares (Fernando Pessoa), uma obra que nunca se termina de ler.
www.rubemalves.com.br
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