São Paulo, terça-feira, 26 de julho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sabor do saber

O sexto sentido

Rubem Alves
colunista da Folha

Os cinco sentidos são, a um tempo, seres da "caixa de ferramentas" e da "caixa de brinquedos". Como ferramentas, os sentidos nos fazem conhecer o mundo. A cor vermelha no semáforo diz que é preciso parar o carro. O som da buzina chama minha atenção para um carro que se aproxima. O cheiro estranho na cozinha me adverte de que o gás está aberto. Como brinquedos, os cinco sentidos me informam que o mundo está cheio de beleza. Eles são órgãos sexuais: com eles, fazemos amor com o mundo. Dão prazer e alegria.
Para realizarem suas funções de poder e prazer, os cinco sentidos exigem a presença do objeto a ser conhecido ou a ser amado. Para sentir a beleza de um ipê florido, é preciso que haja ipês floridos como agora.


O pensamento é um sentido mágico: ele tem o poder de chamar à existência coisas que não existem e de tratar as coisas que existem como se não existissem


Em julho, os ipês rosas, em agosto, os ipês amarelos, em setembro, os ipês brancos: já até sugeri que um músico compusesse uma sinfonia em três movimentos dedicada aos ipês.
Para sentir a beleza triste do canto de um sabiá, é preciso que haja um sabiá cantando. Para sentir o perfume de um jasmim, é preciso que haja um jasmim florido. Para sentir o gosto bom de uma laranja, é preciso que haja uma laranja. E para sentir a delícia de um beijo, é preciso que haja uma boca que me beije. Os cinco sentidos só fazem amor com coisas existentes, no presente. Eles vivem no aqui e no agora.
Há, no entanto, um sexto sentido, dotado de propriedades mágicas, um sentido que nos permite fazer amor com coisas que não existem. Esse sentido se chama pensamento.
Digo que o pensamento é mágico porque ele tem o poder de chamar à existência coisas que não existem e de tratar as coisas que existem como se elas não existissem. É dele que surge a grandeza dos seres humanos. O pensamento nos dá asas, nos transforma em pássaros.
"Mas que realidade têm as coisas que não existem?", poderão perguntar os filósofos. Aí, serão os poetas que darão respostas aos filósofos. "Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?", perguntava Paul Valéry. E Manoel de Barros acrescentaria: "As coisas que não existem são mais bonitas".
Leonardo da Vinci pensava e desenhava máquinas que não existiam e que só poderiam existir em um futuro distante, mas que alegria aquelas entidades não-existentes lhe davam! Por isso, ele as guardava como segredos perigosos que, se conhecidos, poderiam levá-lo à Inquisição. O prazer valia o risco.
Beethoven estava completamente surdo. Não havia sons em seu mundo. Do silêncio dos sons que não existiam, ele fez surgir, em pensamento, a Nona Sinfonia, que canta a alegria da vida.
Faz uns meses, resolvi reler "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez. Que amontoado de não-existentes! Invencionices de alguém que trata o existente como se não existisse. Pensei, de brincadeira, que o autor deveria estar bêbado quando escreveu o livro, tantos são os absurdos maravilhosos que ele constrói. Uns tolos disseram que aquilo era uma parábola sobre a América Latina. Ou seja, disseram que falava sobre uma coisa que existia: o realismo fantástico de García Márquez, depois de passar pelo crivo da hermenêutica, nada mais seria do que uma crônica histórica disfarçada. Nada mais longe da verdade.
O livro "Cem Anos de Solidão" só existe no espaço imaginário do que não existe. E, apesar de saber que o escrito era mentira, que nunca acontecera porque era impossível que acontecesse, eu ri, sofri, vivi.
Somos comedores de palavras e as palavras operam em nós estranhas transformações. Quantas pessoas eu degolei com minha espada de samurai ao ler "Shogun", de James Clavell!
Que extraordinário exercício de alienação é a literatura! Mergulhados num livro, a realidade que nos cerca deixa de existir. Se Marx estava certo ao afirmar que "o homem é o mundo do homem", então, na literatura, nos tornamos criaturas dos muitos mundos da fantasia. Nos tornamos personagens de uma história inventada, atores de teatro.
"Não é incrível que um ator, por uma simples ficção, um sonho apaixonado, amolde tanto sua alma à imaginação, que todo se lhe transfigure o semblante, por completo o rosto lhe empalideça, lágrimas vertam dos seus olhos, suas palavras tremam e, inteiro, seu organismo se acomode à essa mera ficção?", escreveu Shakespeare, em "Hamlet". Os atores são seres alienados da realidade, vivem no mundo da ficção.
É nisso que se encontra "a virtude paradoxal da leitura, que consiste em fazer-nos abstrair do mundo para lhe encontrarmos um sentido", conforme escreve Daniel Pennac, no livro "Como um Romance". Todo artista é um fingidor. Todo leitor tem de ser um fingidor.
Fingir, brincar de faz-de-conta, tratar as coisas que são como se não fossem e as coisas que não são como se fossem -é dessa loucura que surgem as mais belas criações da arte e da ciência. Me daria por feliz se a educação introduzisse os alunos no mundo mágico do pensamento, assim como ele acontece na literatura. Quem experimentou a magia do pensamento uma única vez não se esquece jamais.

Rubem Alves, quantos anos não tem: 71 (esses 71 já se foram). Quantos anos ainda tem, só Deus sabe. No momento escrevendo "Memórias de Infância". Acaba de publicar o livrinho "Pinóquio às Avessas" (Verus, 48 págs., R$ 14,90), além de "A Maçã e Outros Sabores" (Papirus, 112 págs., R$ 27,50) e "Dogmatismo e Tolerância" (Loyola, 176 págs., R$ 22).


Texto Anterior: Filhos, a prova de fogo da educação democrática
Próximo Texto: Pressão cotidiana ou humilhação continuada?
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.