São Paulo, terça-feira, 29 de março de 2005

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sociais & cias.

Projeto feito em parceria com empresas e Ministério da Integração Nacional estimula o desenvolvimento sustentável de comunidades indígenas que sofrem com a desnutrição

Com as próprias mãos

Luanda Nera
colaboração para a Folha

O silêncio da índia xavante Fátima, 30, é a resposta para uma pergunta objetiva: "Você tem alimento suficiente para cozinhar para seus filhos todos os dias?". Não é preciso dizer nada. Dois de seus sete filhos já morreram por desnutrição. Os índios concentram as maiores taxas de mortalidade infantil de todo o país. As aldeias de xavantes do Mato Grosso registraram, em 2004, 133,8 mortes a cada mil nascimentos, índice muito superior ao verificado entre a população brasileira (24,3 por mil, segundo o Ministério da Saúde).
Nos últimos dois meses, a fome matou seis crianças da etnia guarani-caiuá, em Dourados (MS). Para tentar amenizar o problema, o Exército distribuiu 1.200 cestas básicas na região. Em Campinápolis, também no Mato Grosso, seis crianças morreram desde o início de 2005 -e mais de 30 foram internadas. Pressionada após as mortes, a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) enviou uma equipe para distribuir alimentos e percorrer as aldeias.

Mas uma solução criativa e acessível já começou a transformar a realidade da índia Fátima e dos 380 moradores de sua aldeia, São Pedro, distante cerca de 100 km de Campinápolis. Uma parceria entre o Ministério da Integração Nacional, a Fundação Banco do Brasil e o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) resultou em um acordo de cooperação que envolve recursos da ordem de R$ 6,4 milhões. Trata-se do projeto Mandalla, que tem o objetivo de viabilizar a construção de mais de mil unidades familiares de produção agrícola em regiões críticas, como o semi-árido nordestino e o Vale do Jequitinhonha (MG).
A primeira experiência resultante desse acordo de cooperação é a da aldeia São Pedro, que recebeu o projeto em dezembro de 2004. Fátima compartilha com os moradores da comunidade as dificuldades da falta de alimentos. "Quando não consigo comprar comida na cidade, cozinho com o que temos por aqui. Geralmente, faço abóbora, mandioca e feijão. Às vezes, nem isso tenho."
Vindos do litoral, os xavantes têm origem seminômade. Nos anos 70, com a demarcação das terras indígenas, tiveram de se adaptar ao sedentarismo. Isso provocou sérias transformações na forma como lidavam com os recursos naturais -se antes sobreviviam da caça e pesca, hoje lutam para plantar e colher o mínimo necessário para alimentar dezenas de crianças desnutridas.
Desenvolvido pela ONG Agência Mandalla de Desenvolvimento Holístico e Sistêmico Ambiental, o projeto consiste em um espelho d'água rodeado por nove canteiros concêntricos (semelhante a uma mandala) que são irrigados por mangueiras e hastes de cotonetes. No espelho d'água há uma lâmpada acesa para atrair insetos, que servirão de alimento para peixes e patos. A água enriquecida com os nutrientes deixados pelos peixes e aves vai para as culturas e suprime a utilização de fertilizantes.
O projeto garante a subsistência familiar e favorece a produção de excedentes, com a inserção da família em empreendimentos sociais. Índios e entidades responsáveis pelo projeto foram reunidos por intermédio do ator Marcos Palmeira, que teve seu primeiro contato com os xavantes em 1979, quando seu pai, o cineasta Zelito Viana, produzia o documentário "Terra de Índios".
Ainda adolescente, Palmeira conviveu com os índios por três meses, foi batizado e recebeu o nome de Tsiwari, que significa "sem medo". Em 2004, 25 anos depois, voltou à aldeia e ficou surpreso com a precariedade que encontrou por lá. "Assim que cheguei, percebi que precisava fazer alguma coisa. O atendimento disponibilizado pela Funasa não é suficiente. Os técnicos reclamam que os índios não procuram o posto [de saúde], mas é uma questão de conscientizá-los, já que muitas vezes eles nem sabem que estão doentes."
Os resultados da iniciativa já começaram a aparecer e a aldeia não registrou novos casos de morte por desnutrição. Newman Costa, coordenadora do projeto no Sebrae, enfatiza que o trabalho foi protagonizado pelos próprios beneficiados: "Os índios foram para a Paraíba conhecer o projeto, gostaram e, por isso, trouxemos [a experiência] para a aldeia. Não impusemos nada. Quando chegamos aqui, eles já estavam bem sensibilizados, conscientes, participaram do desenvolvimento do processo, escolheram o local para a construção da mandala e as culturas que foram plantadas".

Alface, couve, cenoura, tomate, berinjela -a relação de alimentos que começa a fazer parte do cotidiano dos xavantes de São Pedro aumenta cada vez que algum deles descobre uma nova semente. O cacique Isaías Prowe, 33, destaca que desenvolver técnicas de agricultura para consumo próprio ou para geração de renda é fundamental para a sobrevivência de seu povo. "Pretendemos resgatar alimentos tradicionais da nossa cultura, aproveitando a orientação dos técnicos. Essa terra é boa, dá para produzir. Mas também precisamos aprender a comer alguns alimentos dos brancos que fazem bem à nossa saúde. Precisamos estar abertos para esse tipo de influência. Isso não nos prejudica."
Também ajuda a influência de personalidades como Marcos Palmeira, que decidiu se engajar publicamente na luta pela melhoria da qualidade de vida dos índios xavantes. "A fama ajuda, abre portas. Estou apenas tentando retribuir tudo que recebi deles nesses 25 anos de contato. Tenho uma família aqui. Se, como ator, eu ainda não consegui fazer nenhum trabalho marcante sobre a cultura indígena, como cidadão eu posso", analisa o ator, que começa a divulgar o documentário "Expedição A'uwe - A Volta de Tsiwari", filmado durante sua visita à aldeia São Pedro.


Saiba mais: www.agenciamandalla.org.br; www.bb.com.br


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