São Paulo, terça-feira, 29 de março de 2005


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

leituras cruzadas

Livros revelam curiosidades biográficas e hábitos alimentares de personalidades como Jorge Amado, Gilberto Freyre, Leonardo da Vinci e Esopo

Prato completo

Cristiana Couto
colaboração para a Folha

"O que comem e bebem os personagens de Jorge Amado?", perguntou-se, certa vez, a filha do escritor. Empenhada em pesquisar as iguarias citadas nos romances do pai (1912-2001), Paloma Jorge Amado deparou-se com um vasto material. Quem folheia "Tieta do Agreste", "O Sumiço da Santa", "Gabriela, Cravo e Canela", "Dona Flor e seus Dois Maridos", "Tereza Batista, Cansada de Guerra" e tantos outros livros logo se depara com as delícias da cozinha baiana. E, uma vez imerso no universo de Jorge Amado, o leitor tem a impressão de sentir os aromas e sabores da Bahia que o autor tanto amava.
"Fiz a leitura de seus romances em ordem cronológica para sentir a evolução da presença e da importância da comida e da bebida nos seus livros. Dei-me conta de que valeria a pena identificar não somente os pratos da culinária baiana, mas tudo que se come e bebe", escreve a autora, munida da metodologia de uma pesquisadora, na introdução de "A Comida Baiana de Jorge Amado ou o Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor", o primeiro dos livros publicados a partir de seu levantamento. Lançada pela editora Maltese em 1994, a obra ganhou nova edição feita pela editora Record, em 2003.
"A Comida Baiana de Jorge Amado" trata não só dos pratos de excelência como daqueles que se comem em qualquer casa da Bahia, além de bolos, mingaus e doces de frutas -a merenda, substituta do jantar baiano. "As Frutas de Jorge Amado ou o Livro de Delícias de Fadul Abdala" é o segundo volume fruto do levantamento da pesquisadora. Nele, Paloma leva à mesa frutas ao natural ou em preparações salgadas e doces que também fazem parte do cotidiano dos famosos personagens do escritor baiano.
Ler o primeiro livro é deliciar-se com vatapás, carurus, moquecas e frigideiras, além de pratos menos conhecidos, como mal-assada ou creme-de-homem, cujas receitas foram recolhidas de cozinheiras famosas em sua terra, desconhecidas dos não-baianos. Há também contribuições de amigos da família Amado, como o molho de pimenta com gim do pintor Carybé (1911-1997) e o bolo pernambucano de dona Canô. Não faltam, claro, receitas de Zélia Gattai, viúva do escritor, e da cozinheira baiana Dadá. Já o segundo livro traz receitas gerais para o preparo de licores, batidas e frutas cristalizadas.
A partir de ambos pode-se conhecer as origens, as curiosidades e as dicas de preparo dos vários quitutes, além de descobrir quais são os lugares mais indicados para provar os pratos ou comprar seus ingredientes. A grandeza do caruru (comida feita em homenagem a Cosme e Damião), por exemplo, é medida pela quantidade de quiabos que leva; a frigideira de camarão fica mais gostosa preparada em assadeira com tampa de bordas para cima, onde se coloca carvão em brasa; e uma das melhores lambretas pode ser comida no Mercado Modelo, em Salvador.
Os livros de Paloma Amado oferecem ao leitor, tal qual tira-gostos, pitadas do cotidiano da família na casa do Rio Vermelho, em Salvador, onde a comida embalava conversas, instigava viagens, agraciava o paladar de convidados ilustres e gerava saciedade, prazer e sensualidade. Por trás das preferências gastronômicas de Quincas Berro d'Água ou de Fadul Abdala, vai-se descobrindo que as predileções de Jorge Amado eram o bolinho de carne de caça e o arroz-de-hauçá, e que farinha era item obrigatório em suas viagens. Além das habilidades de Gabriela e da professora de culinária dona Flor, descortinam-se as de Zélia, boa cozinheira e pescadora. Tudo isso é regado a trechos dos romances. É uma pena, portanto, que a edição de "A Comida Baiana" cometa alguns deslizes, como a alusão descuidada às fotos, inexistentes.
Também delicioso, "À Mesa com Gilberto Freyre" apresenta um cardápio semelhante. Autor de clássicos da historiografia brasileira, como "Casa Grande e Senzala" e "Sobrados e Mucambos", o sociólogo e antropólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987) deu relevo à cozinha regional, principalmente à doçaria, ao discorrer sobre o açúcar, tema que para ele era inseparável de outros aspectos da vida cotidiana nacional. Não surpreende, assim, a presença destacada dos doces -pé-de-moleque, pudim de macaxeira, bolo-de-rolo, pão-de-ló- entre os pratos da obra do antropólogo, tirados literalmente das anotações de sua mulher, Magdalena, supervisora das recepções requintadas na Vivenda Santo Antônio de Apipucos (hoje Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre), em Recife (PE).
Eis aí a característica mais marcante do livro: se parecer com um caderno de receitas, daqueles herdados da avó cozinheira, com tudo o que ele representa e diz sobre os que o detém. "À Mesa com Gilberto Freyre" nos conta, por exemplo, que o sociólogo apreciava pratos fortes e iguarias que compõem nossa culinária mestiça, verdadeiramente nacional: caldo verde, arroz-de-coco com camarões, fritada de aratu, sarapatel, vatapá, baba-de-moça, bolo de Souza Leão, empada de palmito e pudim de macaxeira -tudo com muito açúcar e banha de porco. Como "guardião" dessa relíquia, o leitor precisa de algumas horas de forno e fogão: as receitas nem sempre trazem indicações de temperatura e tempo de forno, ou de rendimento.
Sem experiência, quem se aventura a encontrar o ponto de fio da calda de açúcar para o bolo de batata-doce? A obra reproduz, também, cardápios feitos à mão pela senhora Freyre para receber seus convidados, textos que retratam o cotidiano da família, trechos das obras do sociólogo e verbetes de alguns ingredientes. O antropólogo Raul Lody, organizador do livro, reproduz um depoimento da mulher do sociólogo, concedido em 1987. Descobrimos que o estudioso tinha alergia a morangos e cogumelos e que adorava jaca e pitanga -esta última, matéria-prima de seu aclamado "conhaque".
Se é apetitosa a leitura de obras que revelam o lado desconhecido de personalidades, a ânsia em atribuir-lhes facetas inéditas pode chegar a extremos. É o caso de "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci". Publicado no exterior em meados dos anos 80 e lançado em 2002 no Brasil, o livro se apresenta como uma compilação de anotações inéditas do pintor e escultor renascentista (também versado em matemática, astronomia, geologia, física e anatomia). Tais escritos estariam reunidos em um códice, o Romanoff, descoberto há cerca de 20 anos e guardado no Museu Hermitage, em São Petersburgo (Rússia) -embora o museu negue a existência desses documentos.
Controvérsia instaurada -há dúvidas quanto a sua autenticidade e à data do manuscrito-, as anotações atribuídas a Da Vinci reúnem receitas, pensamentos e regras de etiqueta à mesa, e chamaram a atenção da imprensa em vários países. A história inclui o copista dos manuscritos, o casal de autores, Shelagh e Jonathan Routh, e uma autoridade italiana em defesa de sua autenticidade, embora essas informações não constem da edição brasileira. Não seria nada demais, não fosse pelo fato de que o livro é uma grande brincadeira que muitos levaram a sério. O códice não existe, tampouco o copista ou a autoridade italiana e o casal de autores jamais foi encontrado. É tudo uma farsa. Farsa, aliás, de bom gosto.
Infelizmente, a edição brasileira praticamente omite trechos impagáveis -como a abertura de uma taberna pelo artista Sandro Botticelli (1445-1510) e reproduções dos desenhos de Da Vinci como sendo utensílios de cozinha. Apesar disso, a leitura de "Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci" é um passatempo bem divertido. Inteligente, bem-humorado e detalhista, é tiração de sarro do começo ao fim.
Ora com sutileza, ora de modo escancarado, os autores debocham não só da "Nouvelle Cuisine" -abusando dos "coulis" e purês de vegetais e levando a apresentação dos pratos às últimas conseqüências- como também da cozinha medieval e renascentista, em citações freqüentes sobre o uso do açafrão e do manjar branco (prato considerado perfeito pelos médicos à época), e da nova cozinha francesa que a ela se seguiu, em meados do século 17. E creditam a Da Vinci a invenção de tampas de panela, para citar apenas uma das brincadeiras.

Escargôs e rãs, símbolos da cozinha francesa, merecem algumas das melhores passagens. "Depois de escaldar os caracóis, ponha-os em cima de uma mistura de polenta dura coberta com mel, que tenha buracos para posicionar as conchas. Golpeie cada uma com seu martelo. Os pedaços das conchas ficam grudados ao mel e desse modo os caracóis poderão ser mais facilmente extraídos. Mas se não há maneira de extrair um caracol morto de sua concha, excetuando-se o uso do martelo, então suspeito que esse não será um prato apropriado para a delicadeza de uma princesa." E por aí vai.
Depois dessas gostosuras, a leitura de "A Fabulosa Culinária Mediterrânea dos Contos de Esopo" é um pouco insossa. A começar pela releitura das fábulas do grego Esopo (c. 620-560 a.C.). A versão oferecida pelo autor, o escritor Pedro Ernesto de Luna, às vezes é de amargar: a galinha dos ovos de ouro é comparada a um "frango da Sadia" e, na fábula "O Eunuco e o Sacerdote", Eros vira pai-de-santo. No fim de cada uma, a "moral da história" e as conclusões do autor.
Ao contrário do que indica o título do livro, não há relação entre as receitas, os personagens e Esopo. O próprio autor alerta ser "impossível" relacionar Esopo a seus objetivos culinários. Então, por que não desistir da empreitada? Platão também vagou por toda a região do Mediterrâneo e nem por isso se falou sobre sua "filosófica" cozinha. Tudo bem, esqueçamos a compra de gato por lebre e aproveitemos as receitas que o chef Piero Cagnin preparou para a obra. Afinal, não são só os personagens e seus criadores que apreciam um bom banquete.


Cristiana Couto é jornalista, editora do site "Basilico" e mestre em história da ciência pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo.


Texto Anterior: Experimentar - Gilberto Dimenstein: Prazeres de Wanessa Camargo
Próximo Texto: Saiba mais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.