São Paulo, terça-feira, 29 de março de 2005


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Dificuldades com patentes, problemas com patrocínio, roubo de idéias -conheça as provações por que passam os inventores brasileiros, da criação à comercialização de seus inventos

Depois do "Eureca!"

Milton Gamez
Suzana Barelli
colaboração para a Folha

Certas invenções brasileiras mudaram o mundo, mas seus inventores não receberam o devido crédito até hoje. O exemplo mais notório é o de Alberto Santos Dumont, criador do meio de transporte mais espetacular de todos os tempos. Os céus de Paris são testemunha de que ele é o verdadeiro pai da aviação, mas pergunte a um norte-americano quem inventou o avião e a resposta será outra: foram os irmãos Wright, é claro.
Outros casos interessantes envolvem estrangeiros que viveram no Brasil e que aqui fizeram coisas geniais. O artista francês Hercule Florence inventou a fotografia, nos idos de 1833, na Vila de São Carlos, atual Campinas (SP). Na mesma época, quem levou a fama foi seu compatriota Joseph Niépce, que, ao lado de Louis Daguerre, conduziu experimentos fotográficos semelhantes na França. Mais recentemente, em 1972, o alemão Andreas Pavel criou, em sua casa, em São Paulo, um "pequeno equipamento de fixação corpórea para a reprodução de eventos auditivos em alta qualidade", o stereobelt. Em 1979, a Sony lançou o walkman, um fenômeno que foi comprado por 200 milhões de pessoas. Até hoje, a invenção do aparelho portátil de música é atribuída a Akio Morita.
Dos três episódios, o único com final feliz (ou menos infeliz) foi o último. No ano passado, depois de gastar US$ 3 milhões (aproximadamente R$ 8 milhões) em batalhas judiciais contra a Sony durante mais de 25 anos, Pavel fez um acordo com a indústria japonesa e recebeu uma polpuda indenização. Como seu invento poderia ter inspirado outros aparelhos que hoje fazem muito sucesso -como o iPod e os celulares com música-, Pavel poderá ganhar ainda mais dinheiro no futuro. O que fez a diferença, no seu caso, foi o registro de uma patente do stereobelt na Itália, em 1977, e outras na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos, no ano seguinte. Essa é, portanto, a primeira lição que os inventores modernos devem aprender se querem usufruir dos benefícios econômicos de sua criação: antes de anunciar ao mundo uma boa idéia, é preciso garantir os direitos de propriedade industrial sobre ela. Ou seja, obter uma patente, um documento que, por um tempo determinado (até 20 anos), assegura a reserva de mercado ao inventor.
"O inventor precisa ser discreto e tomar precauções legais antes de divulgar ou tentar vender seu invento", diz Dalva Lucia Maffia, titular do Sedai (Serviço Estadual de Apoio a Inventores), de São Paulo. Caso contrário, alguma pessoa ou empresa poderá se apropriar da invenção antes mesmo que o legítimo dono possa dizer "Eureca!".
O registro da patente no Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) e nos órgãos congêneres dos outros países é tão importante quanto a própria criação. Com sede no Rio de Janeiro, o Inpi é ligado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e recebe mais de 20 mil pedidos de patente por ano.
Preparar uma patente é uma arte. É preciso dizer o máximo sobre o invento e seu ineditismo e, ainda assim, revelar o mínimo sobre o seu "pulo do gato". "Ela tem de ser bem redigida para garantir os direitos do inventor", diz Maffia, que acompanha atualmente mais de mil pedidos de patentes.
Muitos inventores afoitos começam a negociar a venda de sua criação antes de sair a concessão da patente, com base somente no protocolo do pedido. É uma política perigosa, alerta Antônio Abrantes, examinador de patentes na área eletrônica no Inpi. "O direito do inventor só está realmente garantido por lei quando a patente é concedida", afirma.
Sigilo absoluto é o nome do jogo. Nada que um contrato devidamente registrado em cartório não resolva. "É fundamental preparar acordos de confidencialidade antes de mostrar as invenções a terceiros", alerta Dalva Maffia. Também é preciso tomar cuidado com pessoas, empresas e associações inidôneas, que oferecem assessoria ao inventor e cobram taxas indevidas ou abusivas. Checar se existem processos contra tais assessores nos órgãos de defesa do consumidor e na Justiça pode evitar futuras dores de cabeça (o Tribunal de Justiça de São Paulo permite consultas pela internet).
"Há muita picaretagem nesse mercado", alerta o advogado Newton Silveira, sócio da firma de propriedade intelectual Cruzeiro/Newmarc e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
O inventor deve procurar assessoria somente de sociedades de advogados registradas na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ou agentes de propriedade industrial cadastrados no Inpi, diz Silveira. "Fora disso, é exercício ilegal da profissão."
Com maior ou menor cuidado, o fato é que há muita gente inventando coisas interessantes no Brasil. Muitas até ganham algum dinheiro com isso. Curioso sobre o destino das invenções que passam por sua mesa e pela de seus colegas no Inpi, Abrantes catalogou por conta própria centenas de inventos no site Inventa Brasil. Figuram em sua Galeria de Inventores Brasileiros nomes como Carlos Prudêncio e Carlos Moretzsohn, criadores da urna de votação eletrônica para o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e Sharlene Serra, inventora do xadrez para cegos.
Existem vários tipos de inventores. O cientista, que trabalha sozinho, em empresas ou universidades; o autodidata criativo, que supera a falta de conhecimentos técnicos com a ajuda de terceiros; o considerado maluco, apelidado de "professor Pardal". Há os sonhadores e os pragmáticos, os ingênuos e os desconfiados. Algumas características são comuns a todos eles. "Os inventores independentes sempre acham que suas criações são as melhores do planeta. Eles têm certeza de que vão ficar milionários e sempre suspeitam que todo mundo quer roubar sua invenção", diz Maffia, que trabalha com desenvolvimento tecnológico e patentes há mais de 30 anos.
Hoje, a maioria dos inventos apresentados ao Inpi são simples, com baixo conteúdo tecnológico. Os melhores inventos e inovações são encaminhados pelas empresas. Isso revela que o perfil médio do inventor individual brasileiro é mais parecido com o professor Pardal do que com Leonardo da Vinci, o gênio renascentista que, além de magnífico pintor, esbanjava conhecimentos de anatomia, perspectiva, geometria, matemática, hidráulica, arquitetura e mecânica e era um grande inventor de máquinas civis e militares.

Embora não sejam cientistas nem gênios, alguns inventores tiveram boas sacadas e conseguem viver de suas idéias. Poucos conseguem enriquecer com seus inventos, como fez Adriano Sabino, inventor da bóia-espaguete (sua empresa, a Toy Power, hoje fabrica mais de 40 brinquedos aquáticos). Mas há quem consiga ganhar dinheiro o suficiente para continuar inventando.
É o caso, por exemplo, de Armando Monteiro, que inventou o Sombreiro, uma engenhosa cobertura para estacionamentos, e o Forhands, um lavabo inteligente que está sendo instalado em lojas da rede Wal-Mart (leia mais à pág. 14). Ou de Roberto de Sá Gonçalves, criador de um aparelho para economizar combustível, o Qmeter Mix. Os dois patentearam seus inventos e montaram negócios próprios que deram certo.
Outro inventor que começou a trilhar esse caminho e tem certeza de que vai enriquecer é Rubens José de Oliveira Filho, autor do projeto Safira, um sistema de reciclagem da água para lavadoras de roupas. Ele fechou sua oficina de consertos para se dedicar com exclusividade ao invento.
As taxas de licenciamento de produtos para as empresas não costumam ser divulgadas pelas partes envolvidas. Segundo Abrantes, do Inpi, o inventor recebe entre 5% e 10% do faturamento bruto da empresa com o novo produto -o que pode significar de 40% a 50% do lucro líquido do invento. O licenciamento é uma opção viável para inventores que não querem ou não têm condições de fabricar e vender seu produto por conta própria.

Muitos inventores seguem o caminho da produção própria. Essa opção exige que o inventor seja também um empreendedor, capaz de atrair pessoas, tecnologia e capital suficiente para viabilizar um empreendimento. É uma jornada longa e penosa. O crédito é escasso e caro, e o Brasil tem poucos incentivos para os inventores individuais. O Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) não tem um programa nacional específico para eles, mas suas incubadoras de empresas regionais podem oferecer apoio àqueles que tenham patentes e queiram transformar suas idéias em negócios.
Em São Paulo, o Sedai, único órgão público de assistência gratuita aos inventores, foi gradativamente esvaziado nos últimos anos. O acompanhamento de processos existentes no Inpi e o apoio aos inventores na redação de pedidos de patente ocorrem na base da teimosia pessoal de Dalva Maffia, com a ajuda de uma secretária.
No mundo dos inventores, é preciso ter mesmo muita obstinação. Alguns projetos levam anos para sair do papel. O Eletroherb, um equipamento de eletrocução de ervas daninhas, de grande utilidade na agricultura orgânica (elimina o uso de herbicidas), está sendo desenvolvido desde 1988 e até hoje não vingou.
O projeto começou na Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) de Sorocaba (SP) -algumas universidades e instituições ligadas ao ensino, como a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), apóiam inventores acadêmicos por meio de programas voltados à inovação tecnológica e à propriedade intelectual. As primeiras patentes do Eletroherb já caíram em domínio público, mas nem por isso o invento foi esquecido.
Em 2000, o engenheiro eletrônico Constantino Augusto Henrique Schwager entrou na Sayyou Brasil, empresa que encampou o projeto. Introduziu melhorias técnicas e obteve mais uma patente, em 2002. Hoje, ele se prepara para lançar a versão comercial do produto. Dois dos quatro inventores da primeira máquina -os engenheiros agrônomos Augusto Eira e Fernando Almeida- são sócios minoritários da empresa. "Estamos em busca de um novo parceiro", afirma Schwager. No fundo, Schwager está diante do mesmo dilema enfrentado por todos os inventores: o sucesso comercial de uma invenção é o que vai definir se ele vai entrar para a história como um visionário, um inovador, ou se será apenas lembrado como mais um fracassado, um romântico sonhador.
"Só há inovação quando há percepção de valor pelo mercado. O invento precisa gerar resultado econômico, pois vivemos num sistema capitalista", afirma Moisés Simantob, coordenador do Fórum de Inovação da Fundação Getúlio Vargas. Muitas vezes, o processo de inovação acaba sendo prejudicado pela falta de preparo do inventor e pela postura predatória de muitas empresas.
O inventor independente precisa falar a linguagem do mundo dos negócios, proteger o direito de propriedade de sua criação e garantir um longo contrato de prestação de serviços de assessoria à empresa no desenvolvimento de seu produto. "Ele tem de passar de inventor a gestor-inovador", defende Simantob.
Inventoras natas, as crianças precisam ser estimuladas desde pequenas para que possam continuar criativas na vida adulta, defende o consultor de marketing industrial José Carlos Teixeira Moreira. Sua fé nos pequenos inventores é tamanha que ele criou uma escola só para eles, o Ateliê Tempo & Espaço, com unidades na Vila Madalena (zona oeste de São Paulo) e em Cotia (SP). No ateliê, monitores estimulam meninos e meninas de 5 a 14 anos, como o garoto Alex a realizar seus inventos.

O Ateliê Tempo & Espaço existe há 22 anos. Em 1984, um de seus alunos foi o garoto Francesco Grazzini, que se interessou por aulas de manutenção de motocicletas e criou pequenas engenhocas. Hoje, Grazzini é engenheiro de desenvolvimento aeronáutico da Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica). É um especialista em cálculos estruturais de aeronaves. Nesse campo, ele continua inventando.
"Diariamente lidamos com pequenas invenções. São elas que movem o desenvolvimento tecnológico. Graças a elas, a invenção de Santos Dumont transformou-se no que é hoje", afirma Grazzini.
Como se vê, quase cem anos depois do histórico vôo do 14 Bis, a saga do Brasil na história da aviação ainda não acabou.


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