São Paulo, terça-feira, 31 de maio de 2005

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sociais & cias.

Eles são bem-intencionados, inteligentes e querem contribuir para a resolução dos problemas do mundo, mas se esqueceram de que até mesmo o mais dedicado ativista precisa de um momento para relaxar e cuidar de si

Um descanso para os heróis

Luanda Nera
colaboração para a Folha

Campos de refugiados, crianças famintas, epidemias. Desde 1991, esse são os alvos do trabalho de Mauro Nunes, 40, enfermeiro brasileiro e coordenador de saúde da ONG Médicos Sem Fronteiras. Para ele, trabalho desgastante é pleonasmo. "Já convivi com equipes que se recusavam a comer enquanto as pessoas da comunidade continuassem a morrer de fome. Isso não adianta. Faço o melhor possível, mas sei que não vou resolver os problemas do mundo, que muitas coisas não serão feitas."
Ter consciência das fragilidades humanas e das limitações inerentes ao trabalho social é o segredo de líderes sociais como Nunes. O problema é que o enfermeiro é uma exceção. A maioria se acha capaz de resolver todos os males do planeta."Os líderes fazem um trabalho bonito, ético, comprometido, mas para os outros. Não têm tempo para si mesmos, estão sempre estressados. Só podemos oferecer alguma coisa a alguém quando temos abundância dentro de nós", completa.
Auro Lesher, psiquiatra da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), concorda com Nunes. "O estresse dos protagonistas de projetos sociais é evidente e recorrente. Lidamos com questões que extrapolam a nossa competência técnica", afirma ele, que conhece bem o assunto: é fundador e coordenador do Projeto Quixote, que atende mais de 3.000 crianças em situação de risco social. "Os líderes ficam deprimidos, deixam de se cuidar, não se preocupam em se vestir bem."
Lúcia Maria Xavier de Castro, 43, fazia parte dessa maioria que não se cuidava. Presidente da ONG Criola -que ajuda a motivar e capacitar mulheres negras do Rio de Janeiro-, ela sentiu que havia algo de errado quando não conseguia mais cumprir compromissos importantes de sua agenda profissional. Sua rotina se tornou um suplício. "Depois de cinco anos sem tirar férias, estava cansada, desanimada e achava que era culpada pelo que não dava certo. Não conseguia compreender as minhas fragilidades e limitações", desabafa.
Hoje, sua vida está bem melhor. Ela descobriu que precisa se cuidar. Durante depoimento ao Sinapse, Lúcia conta, com orgulho, que redescobriu o prazer em caminhar durante o intervalo do almoço, coisa que há tempos não tem ânimo para fazer. A noite gelada (cerca de -4ºC) de outono, com direito a lareira, vinho, violão e chocolate, marcou o final de uma semana atípica na vida de Lúcia e de outros 19 líderes sociais do Brasil e da Patagônia. Isso aconteceu porque eles foram convidados para participar do 4º Encontro de Desenvolvimento Pessoal, promovido pela ONG suíça Fundação Avina.


"Líderes de ONGs lidam com a face mais cruel da realidade. A responsabilidade de transformar o mundo os obriga a ser super-heróis. Nunca podem dizer "não", já que os problemas sociais são enormes", diz Geraldinho Vieira


"Líderes de ONGs lidam com a face mais cruel da realidade e sofrem muita pressão. A responsabilidade de transformar o mundo os obriga a ser super-heróis. Vivem um estresse muito grande. Nunca podem dizer "não", já que os problemas sociais são enormes", analisa Geraldinho Vieira, representante da Avina no Brasil. Ao contrário de outras entidades que fornecem apenas dinheiro e formação profissional para as ONGs parceiras, a Avina também investe na capacitação pessoal de seus "líderes-parceiros". Para esse retiro coletivo, o cenário escolhido foi Bariloche, na Argentina. Depois de uma semana sem acesso a celular, telefone, TV e computador, imersos em técnicas de meditação e em reuniões de terapia em grupo, os líderes fizeram uma revisão até de seus próprios preconceitos. "Devo confessar que resisti o quanto pude. Sou ocupada demais, repetia para mim e para a Avina", afirma Âmbar de Barros, que coordena o escritório da Unesco (Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura), em São Paulo, e é fundadora da Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância). Âmbar não era a única a olhar a iniciativa com desconfiança. "Sou um pouco cética quanto a esse tipo de trabalho, mas tive de mudar de opinião. Agora, tenho condições de mudar hábitos que estavam me fazendo mal", diz Adriana Caldas Pinto, 39, presidente da Fé Social, de Ilha de Itaparica (BA). Para Jos Schonemaker, 54, da ONG paulista Corrente Viva, o mais difícil foi acabar com a culpa por ter se ausentado do trabalho para um encontro não profissional. "Se fosse uma reunião para discutir os problemas da organização, eu não hesitaria em participar." A culpa de Schonemaker é compreensível, mas precisa ser evitada. Isolar-se, periodicamente, da crueldade do mundo real é o conselho do psiquiatra Auro Lesher para garantir o equilíbrio emocional. "Uma ONG necessita de espaços formais para que a equipe possa metabolizar. Não pode ficar só na hora do cafezinho", explica. Foi justamente essa a saída encontrada pelo enfermeiro Mauro Nunes durante as duras situações que precisou enfrentar: "Na África, eu não tinha família e era difícil separar o trabalho da vida pessoal. Quando chegava em casa, tomava cerveja, ouvia música e fugia dos colegas. Minha estratégia era conversar com a população local, falar a língua nativa. Era uma forma de me desligar. Faço o mesmo hoje, no Rio de Janeiro, depois de passar o dia trabalhando em uma favela". O ator Wellington Nogueira, 44, demorou para aprender isso. Fundador e membro dos Doutores da Alegria, uma das mais respeitadas ONGs brasileiras, seu trabalho é amenizar tristezas -dos outros. Vestida de palhaço, a equipe de "doutores" visita crianças internadas em hospitais de todo o país, a maioria delas com doenças graves, como o câncer. Com mais de 13 anos de experiência, Nogueira só aprendeu a se proteger depois do nascimento de seu filho, hoje com seis anos: "No começo do trabalho, eu saía do hospital e ia direto para a cama, para dormir", afirma o ator. "Com o nascimento do meu filho, passei a entender melhor o sofrimento das crianças. Ele me fez repensar a vida. Aprendi a cuidar de mim."

A jornalista Luanda Nera acompanhou o 4º Encontro de Desenvolvimento Pessoal, em Bariloche, a convite da Fundação Avina.


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