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André Conti

O éthos micreiro

Vai ter menos dinheiro onde se nada em grana, e mais dinheiro onde não havia dinheiro

Dia desses, estava convencendo um amigo a doar R$ 30 a um projeto no Kickstarter. Jane Jensen, criadora de "Gabriel Knight", está pedindo US$ 300 mil para bancar um novo adventure, na veia da série que a tornou famosa. Nada mais justo.

Recentemente, parece que todos os ídolos da computação dos anos 90 estão passando o chapéu no site de financiamento coletivo. Conseguiram tirar até Al Lowe, criador de "Leisure Suit Larry", da aposentadoria.

A culpa, claro, recai sobre Tim Schafer, o gênio por trás de "Day of the Tentacle", "Full Throttle" e "Grim Fandango". Ao ter sua ideia para um novo adventure recusada entre seus principais financiadores, resolveu pedir os mesmos US$ 300 mil no Kickstarter. Saiu com US$ 3 milhões.

A preocupação do meu amigo era de confiança: que garantia temos que Jane Jensen simplesmente não baterá nossa carteira? O que impede Tim Schafer de fugir para o Uruguai com os US$ 3 milhões? Afinal de contas, o Kickstarter fica na internet, terra de larápios e bandoleiros.

Todavia, antes do internauta houve o micreiro. E foi essa mentalidade, o chamado éthos micreiro, que moldou o funcionamento da rede e que deu o tom -de maneira fluida e orgânica, como se diz hoje em dia- da própria mentalidade da internet.

Schafer e Jensen não vão nos roubar, porque estão inseridos no mesmo pacto silencioso. Enganar o público aniquilaria a moeda mais importante da cultura micreira: sua reputação e a confiança que inspira. Para além do talento e da criatividade, o que conta na rede é esse "capital social" (ou "whuffie", termo cunhado pelo escritor Cory Doctorow).

Foi o éthos micreiro que fez do Kickstarter uma alternativa viável de financiamento. E, a cada sucesso como o de Schafer, os fãs passarão a investir mais e mais em projetos independentes.

Nada isenta esses jogos de serem terríveis, mas o sentimento de comunidade que cresce em torno do Kickstarter me parece menos frio que uma produção tradicional, em que a participação "espontânea" dos jogadores costuma ser mediada por equipes de marketing e pesquisas de mercado.

Todo o mundo sai ganhando. Em vez de um punhado de setores-monolito de cultura de massa movimentando centenas de milhões -ou mesmo bilhões- de dólares, centenas de nichos pulverizados (e mais ricos em um sentido não-monetário) em que circulam dezenas de milhões ou até centenas de milhares.

Vai ter menos dinheiro onde se nada em grana, e mais dinheiro onde não havia dinheiro. O importante é ter dinheiro suficiente para permitir (ainda que não integralmente) e incentivar a produção.

Por isso há gente pagando centenas de dólares em títulos que custarão uma fração disso. Os criadores oferecem bônus -que vão de um pôster a jantares e participação ativa no projeto-, mas, ao contrário de um investidor tradicional, ninguém terá lucro pela participação.

Sempre haverá compradores para o "jogo de tiro da vez" ou para "Madden 2027". Mas o éthos micreiro passará a sustentar toda uma faixa média de jogos, entregando o dinheiro diretamente às mãos dos criadores. Bons tempos para jogadores e desenvolvedores.

chorume.org
@andre_conti

LULI RADFAHRER
escreve neste espaço na próxima
edição. Leia a coluna desta semana
em www.folha.com/luliradfahrer

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