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Dona web mandou

Jornalista passa um dia inteiro seguindo todas as sugestões feitas pela internet para descobrir se a rede, que agora nos conhece melhor, alarga ou estreita nossos horizontes

BENJI LANYADO
DO “GUARDIAN”

Nos dias iniciais da web, quando os exploradores da internet vasculhavam seus provincianos recantos, a revista "New Yorker" publicou uma charge que se tornaria a mais reproduzida de suas ilustrações na década seguinte. Um cachorro está diante de um computador, conversando com outro cachorro. "Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro."

Passados quase 20 anos, muita coisa mudou. A web está obcecada em descobrir quem somos e nos oferecer serviços personalizados. A Amazon tenta prever que livros deveríamos ler. Os algoritmos do Facebook se esforçam por nos apresentar a novos amigos. Anúncios de coisas que um dia consideramos comprar nos seguem na rede.

A internet quer ajudar. Quer criar uma experiência personalizada quando estamos on-line. Mas será, que ao fazê-lo, não estará encolhendo nossos horizontes em lugar de expandi-los?

Muita gente acha que sim. Um recente artigo na revista britânica "Intelligent Life" alerta contra o ataque da web à casualidade. "O Google se tornou tão bom em buscar aquilo que desejamos, que dedicamos cada vez menos tempo a desenvolver novos desejos", analisava Ian Leslie, o autor do texto.

Enquanto eu lia o artigo on-line, um anúncio surgiu em minha tela. Após ler 1.500 palavras sobre o ataque da web às descobertas casuais, recebi um anúncio que perguntava: "Você quer ler mais artigos como esse?".

É a sábia web em ação: cansada de ser facilitadora, ela agora prefere antecipar nossas necessidades. Conecte-se, leia, envie a um amigo, curta, compre, clique, clique, clique. Mas qual é a qualidade dessas recomendações? Só há uma forma de descobrir.

Por um dia inteiro, meu objetivo será fazer tudo aquilo que a internet me propuser. Para onde ela apontar, eu clicarei. Por isso, sim, quero ler mais artigos como esse. E clico no anúncio.

O link me leva a uma página para assinar a revista "Intelligent Life" por R$ 48. Começo a digitar meu nome, mas preencho só "Be..." e o programa completa o formulário. E assim, por seis meses, a revista será entregue à minha ex-namorada no apartamento em que vivíamos juntos. Mau começo.

Vou à Amazon, e a loja virtual me oferece bonecos Lego da série "Guerra nas Estrelas". O primeiro é um Sandtrooper. A Amazon nunca esqueceu que dei um boneco desses para meu sobrinho quase um ano atrás. Aceito a sugestão e pago R$ 41 pelo brinquedo, rangendo os dentes.

Envio um e-mail à minha irmã para lhe contar sobre minha generosidade imotivada, e o Gmail me recomenda "considerar incluir" minha mãe. Eu o faço. Psicoterapeuta, minha mãe responde: "Se fizer tudo que a web recomenda, sua cabeça vai derreter".

Logo depois, chega um e-mail de um site de paquera de que sou membro, propondo pessoas "interessantes para você". A oferta nº 1 gosta de música relaxante, comédias românticas, rúgbi e chocolate. A nº 2 é "espiritual, mas não religiosa". A nº 3 é bem bonita, mas, ops, descreve seu senso de humor como "aloprado".

Começo a escrever para as três, ouvindo canções bacanas escolhidas pelo site Spotify com base em minhas listas temáticas. Isso resulta em Fleetwood Mac, hip-hop e bandas indies. Sinto-me atraente e confiante. "Oi! Sou Benji e gosto de Fleetwood Mac. E você?" Envio as mensagens.

Está tudo indo bem, e não é nem meio-dia. No Twitter, passo a seguir mais dez pessoas sugeridas pelo serviço. Pessoas de mídia, parecidas comigo, nada muito interessante. Um deles escreveu o livro "Mentes Sujas - Como o Cérebro Influencia o Amor, o Sexo e os Relacionamentos".

Corro à Amazon. Na seção de sexo e psicologia, sigo o link "consumidores que compraram este livro também compraram". Compro "Bonk, o Curioso Casamento entre Sexo e Ciência". Entro em pânico e corro para rever minha lista de recomendações da Amazon. Agora ela está cheia de brinquedos Lego e livros de sexo.

Entrei naquilo que o estudioso da web Eli Pariser define como "a bolha dos filtros". Segundo ele, os filtros de personalização da rede nos fornecem "uma autopropaganda invisível, amplificando nosso desejo por coisas conhecidas e nos fazendo ignorar os perigos do sombrio território do desconhecido".

No YouTube, torno-me o espectador 180.443 de um vídeo que mostra um iPad sobrevivendo a uma queda de 30 mil metros. Em seguida, o site me oferece gols de falta de Cristiano Ronaldo. Envio um link de um deles a um amigo no Facebook.

Cada vez mais, o Facebook é denunciado como o rei da homogeneidade. Para o analista e colunista da Folha Evgeny Morozov, a rede social está acabando com o individualismo, o anonimato, a curiosidade e o risco.

"O Facebook tem 845 milhões de usuários ativos no mundo. Para onde ele for, é possível argumentar que a internet também irá", escreveu Morozov no "New York Times".

E eu também. Envio cinco convites de amizade a pessoas sugeridas pelo Facebook. Rapidamente, meu celular vibra para avisar: "Patrick aceitou seu convite. Escreva no mural dele". Obedeço. "Oi, Patrick. O Facebook disse que deveríamos ser amigos. O que você acha que a internet deveria me obrigar a fazer?"

Não sei quem é ele, mas Patrick é amigo de um dos meus colegas, Will, e por isso vou ao perfil de Will. "Will curte Inside Volvo UK." Faço a mesma coisa. Mando um e-mail a Will perguntando quem é Patrick, e por que ele, Will, gosta de Volvos. O Google me aconselha a incluir meus amigos Laith, Beth e Nick. A cada nome que acrescento, surgem novas sugestões. Paro na oitava. A Volvo ficará feliz.

Durante anos, o comércio na web era às cegas. Isso mudou. Agora, quase todo site visitado está repleto de cookies, a ferramenta de reconhecimento da web. Onde você está? Está conectado ao Facebook? De que página veio? Qual é seu sexo? Se a web o conhece, será capaz de monetizá-lo.

Vou à página de preferências publicitárias do Google, onde o gigante de buscas reúne tudo o que imagina saber sobre você, para poder encaminhar propaganda. Para o Google, sou londrino, tenho entre 25 e 30 anos, interessado em viagens, esportes e comunidades on-line. Exato.

Will responde. Conta que Patrick, meu novo amigo de Facebook, é "um irlandês divertidíssimo, que estuda para ser palhaço". Depois, um longo parágrafo sobre iniciativas de segurança da Volvo para carros.

Os amigos que receberam o e-mail sobre Patrick e Volvos começam a responder, intrigados. Nick pergunta: "Isso é uma experiência social ou crise de meia-idade?". Beth: "Sério, Benji, você está bem?". Will não para de escrever sobre Volvos.

Chega a noite e minhas paqueras do serviço de encontros ainda não responderam. Gastei R$ 128 em um livro sobre sexo, brinquedos Lego e uma assinatura de revista. Tenho quatro novos amigos no Facebook e meu mural na rede social tem como mais recente entrada "Benji curte Volvo UK".

Meus olhos ardem. No site da rede de supermercados Tesco, compro soro fisiológico premium, para lentes de contato, por R$ 32.

Preciso sair para comer. Opto por uma pizzaria próxima, indicada pelo aplicativo Foursquare, porque dois de meus amigos já estiveram lá. No celular, vejo que Patrick, o divertidíssimo palhaço irlandês, respondeu. Ele acha que minha experiência já está se alongando demais, que corro o risco de "ficar aprisionado em um redemoinho de retornos cada vez menores".

Para ilustrar o que diz, Patrick me envia um vídeo do escritor Will Self no YouTube dizendo que quer que a Amazon pare de recomendar livros que ele já leu e que o site deveria sugerir que ele gastasse menos com leitura e saísse mais. Esfrego os olhos e vejo na tela um anúncio para cirurgia de miopia.

Desligo o vídeo e assisto a sete outros vídeos de cobranças de faltas para ver se pego no sono. Decidi que odeio essa experiência e por um breve instante acho que deveria insultar todas as pessoas do universo, em ordem alfabética.

Em seu esforço para nos conhecer melhor, a internet parece aquela tia bem-intencionada que compra péssimos presentes de Natal. Acha que nos conhece, mas não conhece de verdade. Se quer mesmo ser nossa amiga, precisará se esforçar mais.

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