São Paulo, quarta-feira, 21 de setembro de 2011

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LULI RADFAHRER

O segundo Gutenberg


A obra de são Hart revela o poder transformador de ideias cultivadas como filhas, não como escravas


UM FRANCISCANO morreu na semana passada. Talvez nem católico fosse, pouco importa. Sua visão de mundo, que valorizava o conhecimento acima de qualquer bem material e que percebia como era ingênuo confiná-lo, foi seu grande legado. Seu nome era Michael Hart.
Verdadeiramente fiel à causa que defendia, seu perfil era quase desconhecido, ainda mais se levado em conta o tamanho de sua obra: o e-book.
Pelo que se lê de seu obituário, o sr. Hart (que por ironia morreu de ataque do coração) não era homem de muitas posses ou patentes. Pelo menos é o que deixava transparecer nas poucas entrevistas que dava por causa de sua segunda maior invenção, o Projeto Gutenberg, uma grande biblioteca pública digital, iniciada muito antes que o mundo viesse a se fascinar com Kindles e iPads.
Aos 64, Hart morreu cedo. Mas viveu o bastante para ver sua ideia vingar e se estabelecer. Sua invenção foi disruptiva como mais tarde foram o formato MP3, o protocolo P2P e boa parte dos sistemas de código aberto que sustentam a internet que tantos usam de forma egoísta e pragmática.
Em 1971, então com 24 anos, ele poderia ser visto como mais um dos jovens hippies que perdiam tempo naquela utopia descabida de uma rede mundial de troca de documentos eletrônicos. Como muitos deles, Hart permaneceu fiel às suas ideias e, constante como um bom jardineiro, nunca tentou transformar sua plantinha. Nem ser mais importante do que ela.
Em tempos egoístas e pragmáticos, essa atitude chega a provocar estranheza ou até desprezo pela ingenuidade. Por mais importante que seja sua invenção, não há registro de powerpoints com sua trajetória nem em um mísero TED. Justo hoje, quando até militantes como Julian Assange não perdem a chance de aparecer como bad boys e, no egocentrismo, colocar em risco a organização em que atuam -já que muitos governos, incapazes de proteger seus arquivos, resolvem queimá-los logo de uma vez.
Como toda grande intenção, a iniciativa do sr. Hart começou pequena e beirando a ilegalidade. Ao receber uma cópia da declaração de independência dos EUA, resolveu digitá-la em um computador e compartilhá-la, gratuitamente, por uma das redes que, anos mais tarde, comporia a internet.
Silenciosamente, sem perder o foco em sua meta, manteve seu trabalho de formiguinha, digitando a Bíblia, as obras de Homero, de Shakespeare e de tantos outros. Sozinho e sem pedir créditos, digitou mais de 300 livros. Aos poucos, sua atitude inspirou voluntários de toda parte, que nunca abriram mão do formato aberto, acessível e gratuito.
A abnegação de são Hart (e de tantos como ele) deixa no mundo uma marca muito maior do que pode supor uma vã tecnologia. Da mesma forma como a prensa de tipos móveis do Johann Gutenberg original ajudou a fundamentar a metodologia científica, a alfabetização e a democratização do mundo, o compartilhamento gratuito de documentos eletrônicos será responsável por muitas das transformações que virão por séculos a fio.
Seu exemplo mostra o poder transformador de ideias cultivadas como filhas, não como escravas para rápido consumo. E ajuda a entender o sucesso de algumas iniciativas, mesmo que só ela só venha décadas mais tarde.

folha@luli.com.br


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