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Turismo

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J. P. Cuenca

Entre o embarque e o desembarque

'Abra o botão da calça', diz o policial do aeroporto de Barajas; já ia desistindo de conhecer a Terra Santa

Voar é um pouco como a vida: ao contrário do que o senso comum sugere, a experiência não torna mais fácil. No caso dos aviões, não parece ser possível acostumar-se com as filas, a revista, o confinamento, o ar viciado, a má comida, a atmosfera genérica e desconfortável das salas de embarque. E o tempo morto. Mas às vezes algo acontece entre o embarque e o desembarque. E o viajante precisa apegar-se à oportunidade ou driblar a crise. Segue uma breve antologia pessoal.

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MADRI/TEL AVIV - Antes mesmo do check-in do voo da El Al no aeroporto de Barajas, funcionários do governo israelense fazem perguntas sobre o propósito da minha viagem. E mais: "Alguém te deu algum presente em Madri?" Eu digo que sim, livros. Qual sua profissão? "Escritor." A moça simpática chama um careca que, compenetrado, faz anotações numa caderneta. "E o que você escreve?" Ficção. "Ficção? Ah, ficção é melhor..."

Eles conversam em hebraico e logo decidem. Pegam o meu passaporte e levam-me a uma sala de espera com pôsteres turísticos de Israel num subsolo do aeroporto. Depois de meia hora vendo TV israelense, sou chamado para a revista, num cubículo ao lado. Dois policiais trancam a saleta a chave. Sem pressa, vestem luvas de plástico nas mãos. Um deles ordena: "Abra o botão da calça". Eu hesito. Já ia desistindo de conhecer a Terra Santa quando o outro se aproxima com um detector de explosivos e o aproxima da minha cintura. O mesmo aparelho foi passado por todos os livros e roupas da minha mala.

Quando tudo terminou, não pude subir até a sala de embarque. Pouco antes do avião decolar, uma policial me escoltou até a minha poltrona.

Em Tel Aviv, nova inquisição, sala e tratamento especial. Ao que parece, naquele país ser escritor é perigoso. Óbvia anotação mental: o que fazer para ser um escritor perigoso no Brasil.

IBIZA/MADRI - Voo típico de fim de férias, baixo-astral entre os passageiros, clima de ressaca entre as fileiras não reclináveis da companhia low cost. Como se não bastasse voltar das ilhas baleares, de onde ninguém em pleno uso das faculdades mentais pode querer ir embora, uma passageira tem um ataque de pânico depois das portas já fechadas.

Ela começa a chorar e aperta o botão de emergência. O avião já começa a taxiar sob a cantilena das instruções de emergência. A aeromoça pergunta se a mulher quer mesmo descer. Ela soluça, soluça, soluça, e quer. Os passageiros reclamam pra burro, a coisa dura mais de uma hora, já que a mala da mulher tem que sair do avião junto com ela. Eu invejo em silêncio sua retidão pessoal, o belo ataque de choro capaz de parar uma aeronave. Não tenho a coragem de também descer do avião.

RIO/NY - Um voo noturno em que meu monitor de LCD não funciona. Reclamo com a aeromoça, que me oferece trocar de lugar. Mal-humorado e com preguiça, digo que não, mas que vou registrar uma reclamação, tento ser desagradável com a funcionária que não tem nada a ver com aquilo. Ao meu lado, na janela de uma fileira dupla, está alguém que eu descobriria ser uma jovem americana de cabelos muito pretos e muito lisos, professora de piano, que oferece: "Pode ver na minha tela". Dividimos os auriculares. O sutil toque dos ombros, a conquista do território das mãos e das lembranças de infância. Terminamos o tinto da aeronave quando ainda estávamos sobre o Nordeste brasileiro. Fizemos cabaninha com os cobertores e atesto e dou fé que, a 30 mil pés de altura, é outra coisa.


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