J. P. Cuenca
Algo fora do ar em Cingapura
Conjuntos habitacionais parecem condomínios de classe média na Barra da Tijuca ou em Moema
Caminho à noite e algo está fora do lugar em Cingapura. Entre arranha-céus espelhados, avenidas comerciais de luxo e bem-cuidados jardins, a impressão é a de que alguém pode começar a desmontar o cenário e apagar as estrelas a qualquer momento.
Em tudo há um sentido de irrealidade: os edifícios coloniais ingleses, o Kampong Glam, bairro árabe, e a Little India daqui parecem saídos de um Epcot Center. A Chinatown da ilha tem ar-condicionado na rua e é limpa como um hospital. A depender do ponto de vista, a cidade-Estado pode parecer uma Hong Kong desidratada ou a Miami do sudeste asiático, mas talvez seja mais fácil dizer o que ela não é: imprevisível, perigosa, caótica. O lugar funciona como um relógio suíço --e orwelliano.
Talvez isso explique o medo que tenho de andar por aqui, ainda que este seja o segundo lugar mais seguro do mundo, perdendo por pouco para o Japão. Seguro se você não professar ideias desagradáveis por aí, claro.
O processo que transformou uma miserável colônia britânica sem recursos naturais numa das economias mais desenvolvidas do mundo em apenas 50 anos inclui perseguição e encarceramento de opositores, controle da imprensa, censura e restrição a liberdade de manifestação. Opositores foram e ainda são sistematicamente processados. A ditadura que alguns chamam de "benévola" produziu uma cidade-Estado globalizada que tem o terceiro PIB per capita do mundo e também é um dos seus maiores centros portuários e financeiros. Os conjuntos habitacionais construídos pelo governo parecem condomínios de classe média na Barra da Tijuca ou em Moema.
Está na cara aborrecida dos seus habitantes: Cingapura é sobre trabalho. E o que sobra para quem não pode praticar o esporte nacional das compras nos onipresentes shoppings centers é comer. Há praças de alimentação populares espalhadas por toda a cidade, os "hawker centers". É a versão local da comida de rua que se encontra no resto do sudeste asiático --aqui, nos anos 70, as barraquinhas foram expulsas da calçada. Elas romperiam os padrões de assepsia que incluem a proibição de vender e mascar chicletes e pesadas multas para quem joga lixo no chão. Restou às autoridades isolar em galpões semiorganizados as milhares de pequenas empresas familiares que oferecem comida chinesa, indiana, japonesa e malasiana desde as primeiras horas do amanhecer até a madrugada. O melhor deles que conheci fica na 19, Old Airport Road. Tem 168 balcões, cada um uma porta ao paraíso.
Num país onde uma cerveja em uma boate pode custar US$ 18 (R$ 45), come-se como um rei pela metade disso. Recomendo escolher várias porções pequenas de comidas que você desconhece. Sonho até agora com a coxinha de rã com pimenta preta.
Fui convidado por um festival literário. Numa das mesas, opinei sobre a política do meu país e lembrei da penúltima coluna que escrevi aqui, a do "turismo sincero", em que trato o Rio como uma cidade construída sobre um cemitério de escravos e critico a prefeitura, o governo do Estado e a PM.
Tentei ser irônico e disse que, se minhas opiniões me fizessem perder meu trabalho na TV ou no jornal lá no Brasil, poderia buscar emprego num diário local e escrever o que quisesse. Achei que eles fossem rir da piada. Não riram.