Zeca Camargo
O presépio da Namíbia
Os animais começaram a chegar e os risos que soltávamos foram se transformando em silêncio
Eles vinham chegando em duplas. Alguns em trios --provavelmente, filhotes acompanhando as mães. A pouca luz que saía era da varanda onde estávamos e de uma lâmpada, bem em cima de uma árvore que, de dia, era a única fonte de sombra naquela clareira onde os animais vinham beber um pouco d'água.
Nós ali, assistindo a tudo ligeiramente embriagados de um delicioso chardonnay sul-africano, já estávamos acostumados com os bichos ao nosso redor --fosse nos safáris de jipe ou na hora do banho, já que a ducha ao ar livre de cada chalé transformava as girafas em passivos "voyeurs". Mas naquela noite de 24 de dezembro, os bichos pareciam orquestrar um plano secreto.
Quem visita a Namíbia vai pela paisagem e, claro, pela oportunidade de ver animais de perto. Só bichinhos --você pode pensar... Mas duvido que mesmo o visitante mais insensível não se derreta ao ver uma leoa passando com um punhado de filhotes. Ou uma girafa crente que está escondida atrás de uma árvore --só com sua cabeça ridiculamente pequena por cima das copas. Ou as zebras misturando suas listras num desfile quase coreografado. Ou mesmo os pequenos "dik diks" (antílopes) calculadamente ignorando a presença humana.
Acompanhado por um guia com o nome improvável de Previous (sim, "Prévio", em português), que nos divertia com sua voz de baixo lírico --só de vez em quando interrompida para que ele pudesse soltar aquele estalo de língua no céu da boa, uma sílaba inusitada que você só ouve aqui e na África do Sul--, passávamos as manhãs circulando num veículo todo aberto montado como uma pequena arquibancada, para que todos tivessem uma boa visão.
Os passeios eram nas primeiras horas da manhã --logo depois que os bichos se alimentavam-- ou no final da tarde, quando eles circulavam com lentidão. No meio do dia, o calor era tão intenso que nenhuma criatura tinha energia para se mover. E nós mesmos nos recolhíamos no hotel, que aceitava a languidez do dia como se fosse uma recompensa a ser desfrutada.
Nessa véspera de Natal, a tarde foi especialmente preguiçosa. Nosso grupo ocupava praticamente todos os quartos --e, na hora do jantar (com iguarias locais preparadas por um chef sul-africano), sentamos numa grande mesa em "u", para que todos ficassem de frente para a paisagem da varanda. Em seguida, exaustos e maravilhados com tudo que tínhamos visto nos últimos dias, sentamo-nos no terraço para esperar a meia-noite. E foi então que eles começaram a chegar.
Vieram sem medo, com a mesma atitude dos bichos que víamos nos safáris: acostumados a não serem importunados, já que o respeito pela natureza é uma prioridade nessas reservas da Namíbia, eles encaram a presença humana como uma convivência pacífica. E sem medo iam se distribuindo em torno do pequeno espelho d'água, que aos poucos refletia não só a beleza daqueles animais, mas também a paz que coloria toda aquela cena.
Os risos soltos que soltávamos foram se transformando em silêncio. Era como se um presépio tivesse se formado espontaneamente --à espera apenas da criança que chegaria para simbolizar nossa crença em dias melhores.
Nosso olhos não viram criança alguma naquela noite --ou quem sabe os bichos a tenham escondido delicadamente. Mas a felicidade que sentimos então era tão grande que dispensava qualquer prova visual de que, naquele momento, a esperança de que tudo vai ficar melhor, de que a gente vai se entender melhor, estava sendo renovada mais uma vez. E na Namíbia.