São Paulo, quinta-feira, 04 de outubro de 2007

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DELÍRIO DE PEDRO

Cravada na Rússia, cidade optou por ocidentalização

Até o último czar, Nicolau 2º, fez questão de lembrar: "São Petersburgo é na Rússia, mas não é russa"

TUCA VIEIRA
ENVIADO ESPECIAL A SÃO PETERSBURGO

Pedro escolheu um lugar estratégico, expulsou os inimigos e construiu ali uma fortaleza.
Contratou os melhores urbanistas e arquitetos disponíveis e trouxe milhares de trabalhadores das regiões mais distantes. Eles limparam os terrenos, drenaram os pântanos, construíram ruas, edifícios, canais, portos, aterros e represas, a grande custo financeiro e humano. Pedro transferiu a capital para esse lugar, moveu os órgãos públicos, obrigou a nobreza a edificar palácios e fundou uma academia de ciências. Proibiu construções semelhantes no resto do país. Fez tudo por decreto, porque podia.
Com tempo e perseverança, essa cidade cresceu, tornou-se economicamente importante, reuniu belezas arquitetônicas e museus grandiosos. Atraiu estudantes, intelectuais e artistas e tornou-se palco de transformações políticas que abalaram o resto do mundo. Depois caiu no esquecimento, resistiu bravamente aos invasores até ser redescoberta como uma das mais belas cidades do mundo.
Em 300 anos de vida passou por três regimes e teve muitos nomes, o primeiro igual ao último: São Petersburgo. Embora pareça ter saído da imaginação de algum escritor de fábulas, a história da cidade criada pelo czar Pedro, o Grande (1682-1725), dispensa fantasia. Os dramas e as belezas da cidade podem ser comprovados e sentidos à primeira vista.
A identidade da cidade deve muito à sua origem, que deu as costas para uma Rússia secular e colocou os olhos em direção ao Ocidente das novas oportunidades. Até mesmo o último czar, Nicolau 2º, fez questão de lembrar: "São Petersburgo é na Rússia, mas não é russa".
São Petersburgo foi desenhada com a racionalidade da geometria num plano de ruas retas e num sistema de canais e ilhas. Grandes perspectivas se abriram, ressaltando a horizontalidade geográfica. Os enormes palácios parecem pequenos diante do gigantismo visual que a cidade proporciona.
Artificialidade e originalidade sempre estiveram juntas por lá. Os esplêndidos edifícios da nova capital, o traçado das ruas e a vida social foram importados da Europa, mas a literatura, a música e os eventos políticos que a cidade gerou são difíceis de imaginar em outro lugar.
Essa modernização imposta de cima para baixo criou um ambiente único de tensão social e riqueza intelectual. Foi lá que Púchkin, Dostoiévski e Gógol escreveram. Lá, Tchaikovsky, Stravinsky e Shostakovich compuseram.
Muitos lugares estão associados a personalidades: Catarina, a Grande, vivia com exuberância em Tsarskoe Selo. Rasputin foi assassinado no palácio Yusupov. Púchkin escreveu seu "Cavaleiro de Bronze" inspirado no monumento a Pedro, o Grande, na praça dos Dezembristas. Dostoiévski ambientou "Crime e Castigo" na região da praça Sennaya. Lênin chegou do exílio na estação Finlândia.
Some-se a isso a beleza natural. Plantada nos pântanos onde o rio Neva (que significa "lama") se encontra com o golfo da Finlândia e dá acesso ao mar Báltico, São Petersburgo é a maior cidade do mundo ao norte de Moscou. Sua latitude gera longas noites de inverno e longos dias de verão. E entre junho e julho, a noite é tão curta que praticamente deixa de existir -é quando são celebradas as famosas "noites brancas".
Hoje, a cidade tira proveito de sua riqueza histórica e cultural. Turistas do mundo todo vêm apreciar as obras do museu Hermitage, assistir aos espetáculos de balé no teatro Mariinsky ou cair na vida noturna.
Enquanto isso, a população revela a vocação cosmopolita de São Petersburgo, tratando os visitantes com naturalidade. Receber estrangeiros é também a razão de ser local.
São Petersburgo vai além da Rússia e é muito mais do que o parque temático que muitas cidades da Europa se tornaram.
A cidade utópica, inventada e reinventada em tão pouco tempo, revela aquilo que o ser humano tem de pior e de melhor. Uma viagem a São Petersburgo ensina mais sobre o que está à nossa volta do que sobre o lugar propriamente visitado.
São Petersburgo, ou Petrogrado, ou Leningrado, ou São Petersburgo novamente, parece o laboratório que homem escolheu para testar os limites de sua capacidade de criação.


TUCA VIEIRA viajou a convite da Tchayka


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