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FERNANDO GABEIRA
Promessas de Ano Novo e a multidão na Esplanada
Nunca vi uma entrada de
ano assim. Fui a vários atos
de posse, todos de amigos. Creio
que poderia mudar aquela frase
do Cazuza e dizer: "Meus amigos
estão no poder e os inimigos morreram de overdose". Mas não é
bem assim: alguns amigos morreram de overdose e uma minoria
foi ao governo. Ir ao poder é diferente. O importante é que o povo
comemorou nas ruas saudando o
início de uma nova era.
É sempre bom saudar uma nova era. Lembro-me de que fiz um
documentário sobre a seca no
Ceará e o intitulei "Viagem ao
Fim de Uma Era". Achava que estava vendo os estertores daquela
calamidade social. Com o tempo
e algumas complicações com o El
Niño, parece que vamos encarar
uma nova estação.
Um poeta francês disse que, de
todas as artes, a de governar era a
única que produzia monstruosidades. Ele não viveu para conhecer algumas formas musicais modernas, talvez nem a TV. Mas é
preciso levá-lo a sério e sentir toda a responsabilidade que caiu
em nossas mãos, independentemente de sermos ou não governo.
Percebi, andando pela Esplanada, que as pessoas estavam orgulhosas, gritavam vivas referindo-se ao lugar de origem, sentiam-se
chegando pessoalmente ao governo. Esse processo de identificação
é raro na história de um país.
Cada retrato que tiravam iria
para a parede de suas casas e, certamente, vai atravessar os anos.
São poucos os retratos na parede
que não doem com o tempo.
Mas esse precisa ser um motivo
de orgulho permanente porque,
senão, acaba se confirmando a tese de que a vitória é apenas um
acidente numa sucessão de históricas derrotas.
Se o futuro for como esperamos
todos nós, entre pancadas de chuva e sol forte, toda história pessoal
será reescrita. Para começar, o
país andará no seu rumo. Novos
líderes emergirão do processo.
Salvadores da pátria serão inúteis
e podem, finalmente, aspirar a
uma discreta aposentadoria.
Marx previa a superação da política tal como a conhecemos
quando se resolvessem as contradições. Estamos muito longe disso. Mas, com o país experimentando uma política estável, um
governo popular que se renove
com regularidade, com muita
energia intelectual canalizada
para a política poderá reorientar-se para os caminhos de sua própria vocação.
O presidente foi generoso ao dizer que realizava o sonho de muitas gerações que tentaram e falharam. De fato, mesmo considerando as limitações da realidade,
todos podem se sentir, de certa
forma, realizados.
Certamente, é preciso ajudar
para que essa planta tenra cresça
e floresça. Porém, para os dinossauros, a sensação diante da democracia popular é a mesma da
de um pai que vê o seu filho se colocando na vida, conseguindo seu
próprio emprego.
Um vasto horizonte se abre para os mais velhos. Se os próximos
quatro anos engrenarem uma
marcha democrática, o país será
como os outros, e a política, como
nos outros, algo um pouco monótono. Se falhar a experiência e
voltarmos aos velhos tempos, isso
significa que nada mudará muito, logo, é possível cuidar de outras coisas.
Enfim, finalmente teremos férias para os livros e as pesquisas
que se acumularam nos sonhos.
Só faltam quatro ou oito anos.
Que a sorte proteja todos os Silvas que se beliscavam na Esplanada, querendo saber mesmo se
estavam vivos para ver um dos
seus no governo. Já vivi momentos assim, o cometa Halley, a virada do milênio, que são históricos,
mas, depois de passados, nos deixaram uma sensação de vazio,
como se os tivéssemos inventado.
Agora todos estarão voltados
para o cotidiano, à espera das
mudanças, do milagre. Para os
que conhecem a história e viveram momentos semelhantes, independência nacional ou mesmo
revolução socialista, esses sentimentos são relativos.
A realidade nunca excede nossos sonhos. O fundamental é que
venha numa cota adequada para
que todos possam gritar de novo
na Esplanada chuvosa: "Valeu a
pena".
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