São Paulo, segunda-feira, 06 de janeiro de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Promessas de Ano Novo e a multidão na Esplanada

Nunca vi uma entrada de ano assim. Fui a vários atos de posse, todos de amigos. Creio que poderia mudar aquela frase do Cazuza e dizer: "Meus amigos estão no poder e os inimigos morreram de overdose". Mas não é bem assim: alguns amigos morreram de overdose e uma minoria foi ao governo. Ir ao poder é diferente. O importante é que o povo comemorou nas ruas saudando o início de uma nova era.
É sempre bom saudar uma nova era. Lembro-me de que fiz um documentário sobre a seca no Ceará e o intitulei "Viagem ao Fim de Uma Era". Achava que estava vendo os estertores daquela calamidade social. Com o tempo e algumas complicações com o El Niño, parece que vamos encarar uma nova estação.
Um poeta francês disse que, de todas as artes, a de governar era a única que produzia monstruosidades. Ele não viveu para conhecer algumas formas musicais modernas, talvez nem a TV. Mas é preciso levá-lo a sério e sentir toda a responsabilidade que caiu em nossas mãos, independentemente de sermos ou não governo.
Percebi, andando pela Esplanada, que as pessoas estavam orgulhosas, gritavam vivas referindo-se ao lugar de origem, sentiam-se chegando pessoalmente ao governo. Esse processo de identificação é raro na história de um país.
Cada retrato que tiravam iria para a parede de suas casas e, certamente, vai atravessar os anos. São poucos os retratos na parede que não doem com o tempo.
Mas esse precisa ser um motivo de orgulho permanente porque, senão, acaba se confirmando a tese de que a vitória é apenas um acidente numa sucessão de históricas derrotas.
Se o futuro for como esperamos todos nós, entre pancadas de chuva e sol forte, toda história pessoal será reescrita. Para começar, o país andará no seu rumo. Novos líderes emergirão do processo. Salvadores da pátria serão inúteis e podem, finalmente, aspirar a uma discreta aposentadoria.
Marx previa a superação da política tal como a conhecemos quando se resolvessem as contradições. Estamos muito longe disso. Mas, com o país experimentando uma política estável, um governo popular que se renove com regularidade, com muita energia intelectual canalizada para a política poderá reorientar-se para os caminhos de sua própria vocação.
O presidente foi generoso ao dizer que realizava o sonho de muitas gerações que tentaram e falharam. De fato, mesmo considerando as limitações da realidade, todos podem se sentir, de certa forma, realizados.
Certamente, é preciso ajudar para que essa planta tenra cresça e floresça. Porém, para os dinossauros, a sensação diante da democracia popular é a mesma da de um pai que vê o seu filho se colocando na vida, conseguindo seu próprio emprego.
Um vasto horizonte se abre para os mais velhos. Se os próximos quatro anos engrenarem uma marcha democrática, o país será como os outros, e a política, como nos outros, algo um pouco monótono. Se falhar a experiência e voltarmos aos velhos tempos, isso significa que nada mudará muito, logo, é possível cuidar de outras coisas.
Enfim, finalmente teremos férias para os livros e as pesquisas que se acumularam nos sonhos. Só faltam quatro ou oito anos.
Que a sorte proteja todos os Silvas que se beliscavam na Esplanada, querendo saber mesmo se estavam vivos para ver um dos seus no governo. Já vivi momentos assim, o cometa Halley, a virada do milênio, que são históricos, mas, depois de passados, nos deixaram uma sensação de vazio, como se os tivéssemos inventado.
Agora todos estarão voltados para o cotidiano, à espera das mudanças, do milagre. Para os que conhecem a história e viveram momentos semelhantes, independência nacional ou mesmo revolução socialista, esses sentimentos são relativos.
A realidade nunca excede nossos sonhos. O fundamental é que venha numa cota adequada para que todos possam gritar de novo na Esplanada chuvosa: "Valeu a pena".


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