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BIORRITMO RIBEIRINHO
Milton Hatoum, autor do livro "Dois Irmãos", privilegiou Manaus na narrativa para "quitar dívida"
Escritor manauara leva o rio dentro de si
HELOISA HELENA LUPINACCI
DA REPORTAGEM LOCAL
"Calmo como uma mangueira". Assim o escritor Milton Hatoum é descrito por quem o conhece. Tão calmo que ficou 11
anos sem publicar um livro, intervalo entre o lançamento de "Relato de um Certo Oriente" (1989) e
"Dois Irmãos" (2000), escrito e
reescrito sete vezes.
Filho de libaneses, nasceu em
1952 em Manaus. Aos 16 anos, foi
para Brasília, de lá, para São Paulo. Aqui, se formou arquiteto em
1977. Foi para Espanha e para a
França. Voltou para Manaus e
quinze anos depois, em 1999, para
São Paulo, de onde fala sobre a vida manauara para a Folha.
Folha - O que acontece com um
manauara que vem a São Paulo?
Milton Hatoum - Entra sem pressa na selva paulistana e aprende a
gostar dela. Mas, de vez em quando, sonha com a imensidão e os
remansos do rio Negro. Uma singularidade de Manaus é ser uma
metrópole no meio da floresta e à
margem desse belo afluente do
Amazonas. Em São Paulo eu sinto
falta do horizonte, da vegetação...
Às vezes fico imaginando aquele
rio... O diabo é que, para onde
vou, levo esse rio dentro de mim.
Quando vou a certos lugares de
São Paulo, tenho a sensação de estar em bairros de Manaus. No
meu imaginário, as cidades brasileiras se misturam o tempo todo.
Folha - Como o rio dita a vida lá?
Hatoum - Euclides da Cunha notou que na Amazônia "o rio é a estrada para toda a terra". O velho
Manaus Harbour liga Manaus à
região amazônica. O rio possibilita uma intensa relação cultural e
econômica entre a cidade e o interior. Além disso, moradores e comerciantes navegam nos igarapés
que cortam a cidade. A paisagem
urbana é anfíbia. Mas desde a implantação da zona franca [1967], a
cidade cresceu sem planejamento, e os igarapés estão poluídos.
Folha - Que lugares devem ser visitado em Manaus?
Hatoum - Gosto muito do mercado municipal Adolpho Lisboa,
do porto da Escadaria e do centro
antigo, a área em redor da praça
Pedro 2º até a ilha de São Vicente.
A sede do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas],
projetada por Severiano Porto, é
uma aula de arquitetura e deveria
ser modelo para a habitação popular. Além do teatro Amazonas,
da Ponta Negra e dos lugares mais
visitados, vale a pena pegar uma
catraia no porto da Escadaria e
navegar pelo igarapé do Educandos. Se der tempo, um passeio pelo arquipélago das Anavilhanas é
o máximo. Sugiro também subir
o rio Negro até Barcelos, a primeira capital da Província. Ou então
um passeio pelo rio Urubu e pelo
lago Tupira, perto de Silves. Isso
sem falar de Manacapuru e seus
lagos. É uma viagem sem fim.
Folha - Certa vez, você disse "Vejo
conflito em tudo [em Manaus]".
Um visitante atento percebe isso?
Hatoum - Ele logo percebe que a
população e a cidade herdaram
muita coisa das culturas indígena
e européia. Manaus é o nome de
uma tribo que foi dizimada. A zona franca é irreversível. A periferia é uma favela gigantesca, o desmatamento foi brutal. A ironia
mais trágica é que em muitos
bairros pobres falta água, numa
cidade banhada pelo maior rio do
mundo. Em 1976, um prefeito-coronel destruiu a praça Nove de
Novembro, um logradouro histórico, pois a notícia da Independência só chegou a Manaus no dia
9 de novembro. Destruiu praças e
monumentos, cortou árvores
centenárias, fez o diabo em nome
do "progresso". O atual prefeito
encheu a cidade de palmeiras, só
que de palmeiras importadas! Há
centenas de palmáceas amazônicas... Não é de enlouquecer?
Folha - Por que Manaus é tão presente no livro "Dois Irmãos"?
Hatoum - No meu primeiro romance [Relato de um Certo
Oriente], o espaço da cidade não
aparece muito. O relato é uma
viagem interior, com lances de
uma memória inventada. Quando escrevi "Dois Irmãos", estava
possuído pela cidade. Foi inevitável, porque passei quinze anos lá.
Aí juntei os dramas de uma família com o "progresso decadente"
da Manaus moderna. A gente escreve sobre algo que nos toca profundamente. Eu tinha uma dívida
afetiva e moral com a minha cidade, e eu tentei quitá-la escrevendo
um romance. É pouco, mas é tudo
o que pude fazer, com muita paixão, dor e também alegria.
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