São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2008

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FRONTEIRA VERDE

Para guia, selva é sua pátria, com fronteiras próprias

O peruano Enrique Sanchez Guerrero guia turistas em inglês e se nega a tirar qualquer coisa da mata

DA ENVIADA ESPECIAL À AMAZÔNIA

Ele se sente mais confortável fazendo explicações em inglês. Sua língua-mãe é o espanhol. E seu cotidiano de trabalho, na Amazônia. "Faço poucos passeios em português, por isso me desculpem se me faltar alguma palavra." Tudo parece pouco provável. Enrique Sanchez Guerrero é peruano, nasceu nos arredores de Lima, cresceu na porção da floresta amazônica no Peru e vive em Manaus.
A fluência no inglês é que lhe garante o sustento. A maior parte dos hóspedes que atende é formada por estrangeiros. E seu inglês é perfeito. Aprendeu nos 18 anos em que viveu na Escócia, trabalhando em navios petroleiros. Os filhos vivem na Itália, na Escócia e no Peru.
Seria ele um cidadão do mundo? Não. "Considero a Amazônia a minha pátria. Não importa se é a Amazônia peruana, a boliviana ou a brasileira. As fronteiras da floresta são mais reais que as dos mapas."
O rosto de traços duros andinos se amolece todo em sorrisos encabulados quando ele se esquece do nome de uma flor em português. Ele coça o cocuruto, pensa no nome em inglês e solta o nome científico, na esperança de que alguém se lembre do nome popular.
Na floresta, Enrique cutuca com um graveto as tocas de aranhas, a quem chama de amigas, para que elas apareçam. Coloca a mão em formigueiro até ela ficar coberta de formigas, para mostrar para o grupo.
Mas não tira do lugar qualquer coisa que não possa ser devolvida logo depois. "Em alguns dos hotéis em que trabalho, os guias cortam pedaços do cipó-d'água para mostrar para os turistas que tem água ali dentro. Estão matando esses cipós. Há regiões inteiras em que quase não há mais cipó d'água. Eu não tiro nada da floresta."
E não tira mesmo. No máximo, raspa a casca do lacre para mostrar como é a seiva.
Depois de navegar 20 dias sozinho por esses rios, de se perder por uma semana com um grupo de turistas no meio da mata -"eram franceses desobedientes que adoraram a idéia de estar perdidos"- e de perder a conta de quantas vezes conduziu cursos de sobrevivência na selva, quando questionado sobre qual é a parte da floresta de que mais gosta, ele dá uma resposta simples: do igapó.
"Ali a vida começa, as sementes alimentam os peixes ou viajam nas correntes até pararem em outra parte para brotar".
E quando conta dos lugares que conhece (das capitais européias aos vilarejos amazonenses), dos filhos (são seis, cada um num canto), das vezes que casou (duas), dos trabalhos que teve (dos petroleiros do mar do Norte às aulas de espanhol em Manaus), desperta a curiosidade a respeito de sua idade. Mas não responde. Sem um fio de cabelo branco, diz ter mais de 80. Diante da descrença, emenda: mais de 70. E ri, e o rosto se amolece todo.
Apesar de considerar a Amazônia sua pátria, ele deixa claro o tanto que sente falta do Peru. Comendo um frango com pimenta com sumo de mandioca e farinha, jura que ali tem queijo -não tem. Ele insiste. "É como o molho huacaína que comemos no Peru, de queijo e pimenta, servido com batata." Não é, mas não custa nada deixá-lo lembrar das "papas à huancaína" de seu país. (HL)


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