|
Texto Anterior | Índice
FERNANDO GABEIRA
Obrigado pelo verão, mas mande logo esse outono
Quando fui buscar as meninas que chegavam da
praia da Guarda, dei-me conta de
que não só as férias acabaram: o
próprio verão parece ter escorregado entre meus dedos. Tudo de
ruim, que acontece separadamente, veio junto: morte de Cássia Eller, onda de sequestros e assassinatos, enchentes e, fechando
o cortejo, o mosquito da dengue.
Sobre a morte de Cássia Eller,
ainda escreverei um dia. Pelo menos foi essa a promessa que me fiz
de madrugada, voltando de scooter do Instituto Médico Legal, detalhes revirando na cabeça e a
moto saltando como uma cabrita
no asfalto irregular.
A onda de sequestros e assassinatos acabou confirmando algumas intuições sobre segurança.
No caso de Washington Olivetto,
como em tantos outros, foi decisiva a participação popular. Desde
o guarda municipal em Serra Negra à menina do estetoscópio em
São Paulo, muitos deram sua ajuda. Tanto no sequestro de Olivetto como na morte do promotor
em Minas, o chamado crime organizado revelou que, apesar de
tudo, deixa inúmeros furos.
Grupos que atuaram na esquerda, remanescentes de lutas de libertação nacional: não são poucos os que deixaram a política para entrar diretamente no crime.
Quando Hans Magnus Enzensberger veio lançar um livro sobre
violência, tive a oportunidade de
debater com ele na PUC do Rio.
Uma de suas teses centrais: os movimentos de libertação, distorcidos pelo tempo e pela falta de
perspectiva, sequestram, estabelecem elos com o tráfico de drogas,
enfim, transformam-se em quadrilhas como as outras, preocupadas com a própria sobrevivência.
De um modo geral, estava certo.
Lembrei apenas que alguns movimentos escapavam a essa lógica:
os que buscavam a independência no Timor Leste e os tibetanos,
que, asilados na Índia, continuam lutando pela volta do Dalai Lama e por um nível de autonomia em relação à China.
Diante de tantas atrações estivais, o mosquito da dengue veio
correndo por fora, até que nos
déssemos conta da epidemia e
voltássemos a ver, nas águas paradas, nossa ferida narcisística. O
mosquito da dengue não tem só o
poder de nos expulsar do paraíso.
Ele inviabiliza a idéia mesma de
um paraíso tropical, "abençoado
por Deus, (...) sou Flamengo, tenho uma nega chamada Teresa".
Se for mesmo dar um balanço
sério desse verão, o morar num
país tropical etc. só compensa
mesmo para quem tiver uma nega chamada Teresa. O Flamengo,
que frequento todos os dias, anda
meio triste. Salários atrasados, a
luta cotidiana por cestas básicas,
vales-transporte, botijões de gás,
fraldas. Os funcionários passam
por duros momentos. Na piscina,
uns microorganismos andaram
fodendo os meus ouvidos, apesar
de toda a proteção do silicone.
Talvez esse verão tenha sido
mesmo um teste divino para ver
se conseguiríamos manter a cor, o
humor e o tesão ao longo das calamidades. Se Nietzsche tiver razão, podemos concluir que tudo
que não nos mata nos torna mais
fortes, embora a curto prazo isso
seja inútil para quem está moído
com as dores da dengue.
O mosquito da dengue é um
verdadeiro terrorista, já que realiza algumas ações, mas nos mantém em pânico o tempo todo.
Quantas pessoas tiveram uma
simples dor de cabeça e pensaram
que estavam contaminadas? De
madrugada, de janela aberta, de
vez em quando entra um mosquito e pica. Como saber se era o temido Aedes, se escapa no escuro,
se volta com os outros, como uma
esquadrilha zumbindo no seu ouvido? Como compará-los com os
que você viu no jornal da TV, como ver suas costas raiadas de
branco, se tudo o que você capta é
um zumbido à procura de um
pouso num corpo suado?
Se tivesse uma comunicação secreta com as amendoeiras, pediria que amarelassem logo e deixassem cair suas folhas. Há anos
em que um bom outono é tudo de
que precisamos.
Texto Anterior: United: Empresa faz dez anos de atuação no Brasil Índice
|