São Paulo, segunda-feira, 11 de fevereiro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Obrigado pelo verão, mas mande logo esse outono

Quando fui buscar as meninas que chegavam da praia da Guarda, dei-me conta de que não só as férias acabaram: o próprio verão parece ter escorregado entre meus dedos. Tudo de ruim, que acontece separadamente, veio junto: morte de Cássia Eller, onda de sequestros e assassinatos, enchentes e, fechando o cortejo, o mosquito da dengue.
Sobre a morte de Cássia Eller, ainda escreverei um dia. Pelo menos foi essa a promessa que me fiz de madrugada, voltando de scooter do Instituto Médico Legal, detalhes revirando na cabeça e a moto saltando como uma cabrita no asfalto irregular.
A onda de sequestros e assassinatos acabou confirmando algumas intuições sobre segurança. No caso de Washington Olivetto, como em tantos outros, foi decisiva a participação popular. Desde o guarda municipal em Serra Negra à menina do estetoscópio em São Paulo, muitos deram sua ajuda. Tanto no sequestro de Olivetto como na morte do promotor em Minas, o chamado crime organizado revelou que, apesar de tudo, deixa inúmeros furos.
Grupos que atuaram na esquerda, remanescentes de lutas de libertação nacional: não são poucos os que deixaram a política para entrar diretamente no crime. Quando Hans Magnus Enzensberger veio lançar um livro sobre violência, tive a oportunidade de debater com ele na PUC do Rio. Uma de suas teses centrais: os movimentos de libertação, distorcidos pelo tempo e pela falta de perspectiva, sequestram, estabelecem elos com o tráfico de drogas, enfim, transformam-se em quadrilhas como as outras, preocupadas com a própria sobrevivência.
De um modo geral, estava certo. Lembrei apenas que alguns movimentos escapavam a essa lógica: os que buscavam a independência no Timor Leste e os tibetanos, que, asilados na Índia, continuam lutando pela volta do Dalai Lama e por um nível de autonomia em relação à China.
Diante de tantas atrações estivais, o mosquito da dengue veio correndo por fora, até que nos déssemos conta da epidemia e voltássemos a ver, nas águas paradas, nossa ferida narcisística. O mosquito da dengue não tem só o poder de nos expulsar do paraíso. Ele inviabiliza a idéia mesma de um paraíso tropical, "abençoado por Deus, (...) sou Flamengo, tenho uma nega chamada Teresa".
Se for mesmo dar um balanço sério desse verão, o morar num país tropical etc. só compensa mesmo para quem tiver uma nega chamada Teresa. O Flamengo, que frequento todos os dias, anda meio triste. Salários atrasados, a luta cotidiana por cestas básicas, vales-transporte, botijões de gás, fraldas. Os funcionários passam por duros momentos. Na piscina, uns microorganismos andaram fodendo os meus ouvidos, apesar de toda a proteção do silicone.
Talvez esse verão tenha sido mesmo um teste divino para ver se conseguiríamos manter a cor, o humor e o tesão ao longo das calamidades. Se Nietzsche tiver razão, podemos concluir que tudo que não nos mata nos torna mais fortes, embora a curto prazo isso seja inútil para quem está moído com as dores da dengue.
O mosquito da dengue é um verdadeiro terrorista, já que realiza algumas ações, mas nos mantém em pânico o tempo todo.
Quantas pessoas tiveram uma simples dor de cabeça e pensaram que estavam contaminadas? De madrugada, de janela aberta, de vez em quando entra um mosquito e pica. Como saber se era o temido Aedes, se escapa no escuro, se volta com os outros, como uma esquadrilha zumbindo no seu ouvido? Como compará-los com os que você viu no jornal da TV, como ver suas costas raiadas de branco, se tudo o que você capta é um zumbido à procura de um pouso num corpo suado?
Se tivesse uma comunicação secreta com as amendoeiras, pediria que amarelassem logo e deixassem cair suas folhas. Há anos em que um bom outono é tudo de que precisamos.



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