São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

A distante e próxima nova guerra de Bush

A s coisas vão bem para George W. Bush. Um presidente qualquer, com resultados medíocres na economia, talvez perdesse as eleições parlamentares, como costuma acontecer com os presidentes ao longo da história norte-americana. O atentado ao World Trade Center parece ter colocado a economia num segundo plano, dando aos republicanos uma margem de manobra que permitiu inclusive redefinir sua relação com o mundo.
As alterações na política externa americana vão desde a recusa em ratificar o Protocolo de Kyoto até as medidas protecionistas na economia, o novo enfoque na questão das armas nucleares e a rejeição ao Tribunal Penal Internacional, para ficar apenas nos exemplos mais conhecidos.
Tudo isso pode ser lido nos jornais. Há, no entanto, algo que os jornais não conseguem captar tão bem. São as mudanças que devem acontecer na própria sociedade norte-americana, que se desloca com rapidez para uma visão de fortalecimento da ação unilateral de seu grande país.
Sou assinante da revista "Tikkun", que conheci há alguns anos numa banca de Israel. É feita por judeus norte-americanos de esquerda, cuja posição sobre o conflito no Oriente Médio coincide com a minha, assim como alguns outros pontos ligados à cultura da paz e à renovação do nosso campo de pensamento.
O que consigo captar ainda é um certo constrangimento dos intelectuais norte-americanos e sinais de uma certa impotência. A ativista Medea Benjamim conta num pequeno artigo como foi uma reunião do Global Exchange para discutir a possível guerra contra o Iraque. Ela perguntou: "Quantos de vocês acham a guerra inevitável?" Todos os presentes levantaram a mão. Em seguida, perguntou: "Quantos de vocês pensam que podem deter essa guerra?" Todos levantaram a mão, mas com um sorriso nos lábios. Segundo ela, foi como se todos gritassem: "O povo unido jamais será vencido" e sussurrassem para si mesmos que o povo nunca está unido e, frequentemente, é vencido.
Numa outra análise, Michel Lerner examina o impacto da decisão dos democratas de apoiar a pressa de Bush para a guerra. Foi uma tentativa fracassada de sobreviver no momento eleitoral. A oposição poderia ter afirmado que nada justificava decidir o assunto antes das eleições de novembro. E poderia ir mais longe, repetindo o argumento de Al Gore de que muitos americanos duvidam que já tenham sido esgotados todos os métodos não- violentos para tratar o problema iraquiano.
Nada disso foi feito. Os democratas, que aceitaram a guerra para se salvar nas eleições, acabaram naufragando, e o movimento pacifista norte-americano talvez tenha dificuldade de ganhar o ritmo do europeu, que já ocupa as ruas há alguns meses.
Tudo isso parece divagação, mas tem impacto no Brasil. Nossa luta contra a inflação, por exemplo, vai depender, em parte, do preço do petróleo. Nossos anseios de crescimento dependem, em parte também, de investimento externo. Em síntese, nosso futuro depende, em parte, do rumo dessa crise mundial.
O governo brasileiro tem mantido uma posição discreta, buscando soluções multilaterais dentro da ONU. Será que o governo leu aquele relatório de Tony Blair, bombardeado pela mídia?
Será que consultou alemães e franceses sobre o desdobramento da crise mundial, será que esboçou um encontro dos latino-americanos para avaliarem, preliminarmente, o impacto da guerra num continente sacudido pela crise econômica, por altos índices de desemprego e pela inquietação social?
Entre a decisão de grande parte dos norte-americanos de apoiar a guerra contra o Iraque e a perplexidade dos seus intelectuais, há um espaço possível de trabalho para que os métodos não-violentos sejam experimentados. Os articulistas do "Tikkun" consideram a guerra ruim para o mundo, para os Estados Unidos e para os judeus. E nisso coincidem com os alemães, que se colocam contra a guerra argumentando que o Oriente Médio precisa de um choque de paz e não de novos conflitos armados.
Voltando ao 11 de setembro, ponto de partida deste estranho século 21, creio que Michel Lerner sintetiza bem a crítica de fundo à opção bélica do povo americano: "O uso da violência pelas grandes potências convence os outros de que esse é o único "caminho realista" para alcançar objetivos políticos, uma lição aprendida por potenciais militantes de organizações terroristas".
Graças a uma certa indiferença em relação ao mundo, os norte-americanos podem conviver com a contradição de seus dirigentes, que partem para uma guerra de liberação do Iraque e apóiam a campanha de Vladimir Putin na Tchetchênia e a ofensiva de Ariel Sharon em território palestino.
As eleições americanas e as brasileiras revelam que nada é definitivo na luta entre o medo e a esperança. A destruição das torres do World Trade Center jogou a esperança no nível zero, pelo menos por alguns anos. Em 2004, com as eleições presidenciais, veremos se alguma coisa mudou.


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