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São Paulo, segunda-feira, 12 de maio de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Viagens em tempo de Sars

Essa doença conhecida como pneumonia asiática, a Sars (sigla em inglês para síndrome respiratória aguda grave), está mexendo com o mundo de uma forma singular. O turismo já estava meio baqueado depois do 11 de setembro e sofreu um novo golpe com a guerra no Iraque. Agora explode essa doença com grande potencial de propagação.
Com as primeiras notícias, vemos que, apesar dos avanços da medicina, o mundo está perigosamente interligado. Os casos suspeitos no Brasil, envolvendo gente vinda da Malásia, de Hong Kong e do Canadá, revelam como parte do nosso povo multicultural viaja e como somos visitados por viajantes estrangeiros.
Embora a Aids seja uma doença diferente, que surgiu mais perto do Brasil e que se propaga de forma também singular, há sempre uma possibilidade de comparação. Lembro-me do primeiro caso de Aids no Brasil, de uma certa relutância das autoridades em acreditar que a doença já havia chegado e, depois, uma resistência em conferir a ela a importância que merecia.
Uma autoridade me disse certa vez pelo telefone: "Temos inúmeras doenças afetando as camadas mais pobres. Por que se importar tanto com setores da classe média que têm dinheiro para visitar Nova York?". Ele subestimava o potencial de crescimento da pandemia e, sobretudo, ignorava que seus efeitos devastadores poderiam se concentrar, precisamente, nas camadas mais pobres.
A Aids era uma doença, no princípio, associada aos homossexuais, e isso marcou a maneira como se reagiu a ela, desde a indiferença inicial no Brasil aos campos de concentração em Cuba.
A Sars nasce de um vírus menos exótico porque se parece com o do resfriado e dissemina-se da mesma forma que uma gripe. Ninguém pode culpar suas vítimas nem dizer, como os fundamentalistas cristãos nos EUA, que é um castigo de Deus.
Em outras palavras, os preconceitos comuns não vão dificultar a luta contra a Sars, como aconteceu com a Aids. Em compensação, como qualquer doença dessa magnitude, outros elementos inconscientes podem estar em jogo, trabalhando a favor do vírus.
A tendência da burocracia comunista chinesa de infantilizar a opinião pública, revelando apenas o que lhe interessa, foi a primeira aliada da Sars. Os chineses resolveram construir um hospital em tempo recorde, mobilizando aquilo que é uma de suas qualidades específicas: o trabalho coletivo e solidário.
No Vietnã, prevaleceu a competência e, com enorme esforço de rastreamento, foi possível constatar a presença da doença, neutralizá-la e vencê-la. Mas tanto num país como no outro fica bastante evidente que, em áreas mais pobres, como a zona rural chinesa, o potencial de crescimento da doença é vertiginoso.
A Sars, para nós, é representada por um rosto com olhos apertados de oriental e máscara sobre a boca e o nariz. Isso lhe confere um ar remoto, que não corresponde totalmente à realidade. Podemos pensar que isso é coisa de chinês, da mesma forma que algumas pessoas diziam, no século passado, que Aids era coisa de veado.
Aqui no Brasil, a gente tem uma certa tendência a subestimar a precaução. Não consigo esquecer os risos de um grupo de jornalistas que discutia com Newton Carlos na TV, na época da Guerra Fria. Ele falava sobre os perigos de uma guerra nuclear e era olhado como se fosse um marciano.
Felizmente, a guerra não aconteceu, e todos viveram em paz com sua ignorância. No caso da Aids, temos uma história de resistência bem-sucedida e somos apresentados como um exemplo. Se tivéssemos nos dado conta logo no início, talvez o resultado fosse ainda mais favorável .
Pelas características da propagação da Sars, será preciso fazer um esforço coordenado com os vizinhos. O Brasil já acionou um dispositivo envolvendo os países com que os quais faz fronteiras. Nos aeroportos, no entanto, o mecanismo de recolher fichas e acumular todo esse papel talvez não seja funcional no momento de rastrear a doença.
Fica no ar a pergunta, que envolve privacidade e direitos humanos, mas tem de ser respondida: basta apenas informar sobre os sintomas da Sars ou compensa, como fizeram os ingleses, instalar um aparelho de raio-X na passagem pela alfândega? Uma jovem brasileira tinha tuberculose e não sabia. Sua doença foi detectada ao entrar na Inglaterra.
Para ajudar na resposta, de novo recorro à experiência com a Aids: o dinheiro que se gasta na prevenção acaba sendo menor do que o que se gasta quando a doença se instala. Uma aeromoça com um laptop pode, em duas horas de viagem, digitar a ficha de todos os passageiros e passá-la, ao chegar, para um computador que concentra os dados. Os computadores do Sivam, em Manaus, poderiam ser usados para isso.
O país que encontrou uma forma de se defender da Aids poderia encontrar também uma singular resistência à Sars. Não podemos esquecer que, no mundo globalizado, tanto circulam com muita rapidez as doenças como as boas idéias.


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