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FERNANDO GABEIRA
Viagens em tempo de Sars
Essa doença conhecida como pneumonia asiática, a
Sars (sigla em inglês para síndrome respiratória aguda grave), está mexendo com o mundo de
uma forma singular. O turismo já
estava meio baqueado depois do
11 de setembro e sofreu um novo
golpe com a guerra no Iraque.
Agora explode essa doença com
grande potencial de propagação.
Com as primeiras notícias, vemos que, apesar dos avanços da
medicina, o mundo está perigosamente interligado. Os casos suspeitos no Brasil, envolvendo gente
vinda da Malásia, de Hong Kong
e do Canadá, revelam como parte
do nosso povo multicultural viaja
e como somos visitados por viajantes estrangeiros.
Embora a Aids seja uma doença diferente, que surgiu mais perto do Brasil e que se propaga de
forma também singular, há sempre uma possibilidade de comparação. Lembro-me do primeiro
caso de Aids no Brasil, de uma
certa relutância das autoridades
em acreditar que a doença já havia chegado e, depois, uma resistência em conferir a ela a importância que merecia.
Uma autoridade me disse certa
vez pelo telefone: "Temos inúmeras doenças afetando as camadas
mais pobres. Por que se importar
tanto com setores da classe média
que têm dinheiro para visitar Nova York?". Ele subestimava o potencial de crescimento da pandemia e, sobretudo, ignorava que
seus efeitos devastadores poderiam se concentrar, precisamente,
nas camadas mais pobres.
A Aids era uma doença, no
princípio, associada aos homossexuais, e isso marcou a maneira
como se reagiu a ela, desde a indiferença inicial no Brasil aos campos de concentração em Cuba.
A Sars nasce de um vírus menos
exótico porque se parece com o do
resfriado e dissemina-se da mesma forma que uma gripe. Ninguém pode culpar suas vítimas
nem dizer, como os fundamentalistas cristãos nos EUA, que é um
castigo de Deus.
Em outras palavras, os preconceitos comuns não vão dificultar
a luta contra a Sars, como aconteceu com a Aids. Em compensação, como qualquer doença dessa
magnitude, outros elementos inconscientes podem estar em jogo,
trabalhando a favor do vírus.
A tendência da burocracia comunista chinesa de infantilizar a
opinião pública, revelando apenas o que lhe interessa, foi a primeira aliada da Sars. Os chineses
resolveram construir um hospital
em tempo recorde, mobilizando
aquilo que é uma de suas qualidades específicas: o trabalho coletivo e solidário.
No Vietnã, prevaleceu a competência e, com enorme esforço de
rastreamento, foi possível constatar a presença da doença, neutralizá-la e vencê-la. Mas tanto num
país como no outro fica bastante
evidente que, em áreas mais pobres, como a zona rural chinesa, o
potencial de crescimento da
doença é vertiginoso.
A Sars, para nós, é representada
por um rosto com olhos apertados
de oriental e máscara sobre a boca e o nariz. Isso lhe confere um ar
remoto, que não corresponde totalmente à realidade. Podemos
pensar que isso é coisa de chinês,
da mesma forma que algumas
pessoas diziam, no século passado, que Aids era coisa de veado.
Aqui no Brasil, a gente tem uma
certa tendência a subestimar a
precaução. Não consigo esquecer
os risos de um grupo de jornalistas que discutia com Newton Carlos na TV, na época da Guerra
Fria. Ele falava sobre os perigos
de uma guerra nuclear e era olhado como se fosse um marciano.
Felizmente, a guerra não aconteceu, e todos viveram em paz
com sua ignorância. No caso da
Aids, temos uma história de resistência bem-sucedida e somos
apresentados como um exemplo.
Se tivéssemos nos dado conta logo
no início, talvez o resultado fosse
ainda mais favorável .
Pelas características da propagação da Sars, será preciso fazer
um esforço coordenado com os vizinhos. O Brasil já acionou um
dispositivo envolvendo os países
com que os quais faz fronteiras.
Nos aeroportos, no entanto, o mecanismo de recolher fichas e acumular todo esse papel talvez não
seja funcional no momento de
rastrear a doença.
Fica no ar a pergunta, que envolve privacidade e direitos humanos, mas tem de ser respondida: basta apenas informar sobre
os sintomas da Sars ou compensa,
como fizeram os ingleses, instalar
um aparelho de raio-X na passagem pela alfândega? Uma jovem
brasileira tinha tuberculose e não
sabia. Sua doença foi detectada
ao entrar na Inglaterra.
Para ajudar na resposta, de novo recorro à experiência com a
Aids: o dinheiro que se gasta na
prevenção acaba sendo menor do
que o que se gasta quando a
doença se instala. Uma aeromoça
com um laptop pode, em duas horas de viagem, digitar a ficha de
todos os passageiros e passá-la, ao
chegar, para um computador que
concentra os dados. Os computadores do Sivam, em Manaus, poderiam ser usados para isso.
O país que encontrou uma forma de se defender da Aids poderia encontrar também uma singular resistência à Sars. Não podemos esquecer que, no mundo
globalizado, tanto circulam com
muita rapidez as doenças como
as boas idéias.
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