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SOBRADOS E MUCAMBOS
Engenhos desviam o turista para a zona da mata
Rota criada pelo governo do PE percorre região em passeios carregados da divisão casa grande-senzala
FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL À
ZONA DA MATA (PE)
O avião se aproxima do aeroporto de Recife envolvido pelos
azuis do céu e do mar. O comandante convida os passageiros a contemplar Porto de Galinhas pelas janelinhas. Do alto, a
areia e as ondas banhadas pelo
sol fazem salivar qualquer turista vindo de São Paulo. Mas o
destino dessa viagem não é o litoral, e a pergunta no ar é: valerá a pena dar as costas para a
praia e marchar rumo ao oeste
como os bandeirantes?
O governo de Pernambuco
tem certeza que sim. Tanto que
lançou no mês passado a mais
nova rota turística do Estado,
batizada de Engenhos e Maracatus. A proposta é desbravar a
histórica região da zona da mata norte, cujas principais atrações estão na visita a fazendas
coloniais de açúcar e na vibrante cultura popular, cujo epicentro é o maracatu de baque solto
ou maracatu rural.
O passeio inclui ainda provar
da saborosa culinária regional,
admirar o artesanato local e dar
uma passada no curioso Museu
da Cachaça, que aparece no
Guinness como a maior coleção
mundial da marvada.
E não se assuste o leitor com
o maniqueísta primeiro parágrafo desse texto: todas as atrações estão em média a apenas
75 km do Recife, fazendo que
essa região rural seja visitada
sem tirar os dois pés da praia.
Mas, se o viajante gostar da
"zona" (ou ficar perdido pela sinalização falha), não faltam
boas opções de hospedagem rural, algumas em antigas fazendas de açúcar, numa variação
nordestina dos hóteis-fazenda
do Sudeste que atrai a classe
média regional em busca de
mesa farta e passeios a cavalo.
Ao todo, a rota proposta pelo
governo pernambucano inclui
90 atrativos em 19 municípios.
Quase todos têm a vida econômica ainda voltada à cana-de-açúcar, cujas plantações dominam a paisagem rural -lamentavelmente, não sobrou quase
nada da vegetação natural após
séculos de plantios e colheitas.
Talvez pelo fato de ser um roteiro em formação, o turismo
ainda não engrenou. No fim de
semana em que a Folha passeou pela região, havia poucos
forasteiros no local, mesmo
com a realização de um festival
de música em Nazaré da Mata.
O turismo que ainda engatinha é a causa ou conseqüência
de algumas deficiências graves.
No imponente e bem conservado engenho Poço Comprido
(município de Vicência), por
exemplo, a capela do século 18
está desprovida de suas imagens sacras, retiradas do local
por falta de segurança.
Outro ponto fraco é o serviço
de guia, fundamental para o turismo histórico. Nesse quesito,
o mais irritante é a apologia desavergonhada da escravidão
-o engenho Uruaé (Goiana),
administrado por descendentes dos fundadores, chega a
oferecer ao turista a oportunidade de simular o açoite de um
escravo no tronco!
Já os descendentes de africanos oferecem um espetáculo
mais nobre por meio dos grupos de maracatu e de outros
ritmos e manifestações regionais, como o contagiante coco,
a ciranda e o cavalo-marinho.
Tudo somado, a zona da mata norte é uma oportunidade
para ver a dicotomia gilbertofreyreana de "Casa Grande &
Senzala" e "Sobrados & Mucambos" travestida agora de
engenhos e maracatus.
Aqueles, administrados por
descendentes de senhores
transformados em empresários de turismo e usineiros. Estes, impelidos pelos caboclos
descendentes de escravos convertidos em bóias-frias. Não é a
perfeita tradução daquela máxima de que as coisas precisam
mudar um pouco para continuar do mesmo jeito?
FABIANO MAISONNAVE viajou a convite do governo de Pernambuco
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