São Paulo, segunda-feira, 17 de junho de 2002

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FERNANDO GABEIRA

Repórteres no olho do furacão

O assassinato do jornalista Tim Lopes é um trauma que pode inspirar mil artigos, com mil ângulos diferentes. O centro do debate tem sido a violência urbana, com a emergência dos falcões de sempre contra as pombas de sempre. A turma do mata-e-esfola contra a das obras sociais e passeatas de branco.
Como acho que as soluções simplificadas, de um lado ou de outro, não satisfazem e que ainda vai levar muito tempo para a sociedade dar uma resposta complexa a esse tema, prefiro cuidar do ofício de repórter; mergulhar de novo nas coisas como elas são, sem discursos sobre como deveriam ser.
No momento em que Tim Lopes morre no Brasil, é lançado na Europa um documentário de 96 minutos inspirado na vida de James Nachtwey, intitulado "Fotógrafo de Guerra". Nesse documentário, disponibilizado na internet (www.war-photographer.com), através de missões em pontos de guerra, é possível conhecer o trabalho de um correspondente e os conflitos com a situação da qual se quer fugir, mas em que se sente preso pela responsabilidade profissional.
É um trabalho de qualidade, à altura do próprio Nachtwey, e seu realizador, Christian Frei, ganhou o Oscar da categoria.
Foi questionado o uso de microcâmeras em alguns artigos sobre Tim Lopes. O fundamento são as posições de Robert Fisk, correspondente do "The Independent", que condena a tomada de partido nas guerras e mantém uma postura independente. O diabo é que o contexto de Fisk, a Guerra do Golfo ou mesmo a do Afeganistão, não pode ser aplicado universalmente.
Câmeras ocultas, como numa favela do ABC paulista, serviram para proteger inocentes assassinados pela polícia. Não me lembro como Fisk trabalhou na fragmentação da Iugoslávia, mas houve momentos em que éramos detidos pelas mais diferentes patrulhas, não havia uma clareza de quem era quem. Tínhamos que fotografar às escondidas. Não dava para dizer: "Caro senhor patrulheiro, sou um repórter independente e vou documentar algumas cenas que pretendo apresentar com todo o rigor ético".
Temos de fazer muitas fotos escondidas. A presença da câmera Leica nas mãos dos grandes fotógrafos da agência Magnum não se deve apenas à sua excelência técnica. Ela tem um obturador silencioso, que permitiu que muitas fotos fossem feitas discretamente.
Não vejo como condenar em absoluto ou absolver em absoluto a imagem feita em sigilo. No caso de Tim Lopes, era missão legítima, como foi a grande reportagem sobre a feira de drogas que lhe valeu um Prêmio Esso. Se serviu ou não para reduzir o tráfico é uma questão secundária, uma vez que seu trabalho consistiu em mostrar a vida real.
A morte de Tim Lopes despertou uma certa onda de críticas ao jornalismo investigativo. Não a temo, porque o jornalismo sempre estará na linha de frente, independentemente do perigo. Nosso adversário é econômico. As agências de fotorreportagem estão sendo fechadas, a tendência ao espetáculo enfraquece o espaço da reportagem na TV, a própria sociedade vai aos poucos dando as costas aos grandes problemas, mergulhando na fantasia.
O adversário econômico pode ser letal. Grandes reportagens demandam tempo. Demandam equipamentos, também. Se o repórter marca um encontro às dez e não aparece, fica mais fácil localizá-lo se ele possuir uma pulseira monitorada por GPS. O satélite pode precisar onde ele está naquele momento, facilitando a busca.
Há muitas maneiras de fortalecer o trabalho jornalístico. A ONG Repórteres sem Fronteiras lançou alguns mandamentos que deveriam, no meu entender, ser incorporados pelas empresas e pelos jornalistas brasileiros.
Perdemos nove jornalistas entre 1996 e 2001. Todos assassinados porque denunciaram corrupção em nível municipal. A morte de Tim Lopes abriu os olhos para um outro tipo de problema. A cobertura nas favelas precisa ser vista como algo especial, sobretudo em áreas dominadas pelo movimento de drogas.
Sou contra as tentativas de usar este episódio para condenar a Rede Globo. No entanto, como jornalista, confesso que a imprensa não nos deu uma versão muito precisa do desaparecimento de Tim Lopes.
Se ele estava lá para cobrir um baile funk, como é que marcou com o motorista para pegá-lo às 22h, se os bailes funk jamais começam antes das 23h? É mesmo possível haver sexo explícito usando meninas em bailes funk? A última história desse tipo envolvia garotas que engravidavam brincando de sentar no colo dos meninos. Sérgio Arouca, então secretário da Saúde, acabou sendo um pouco ironizado por embarcar nessa versão.
A matéria que Tim Lopes não completou sobre os bailes funk do complexo do Alemão não pôde ser filmada como ele gostaria, mesmo porque os bailes foram proibidos. No entanto, com ajuda de testemunhas e dos músicos que tocaram por lá, é possível reconstituir a história.
Passada a indignação, não há outro caminho a não ser apurar. Sempre tive um grande fascínio em saber como é por dentro o complexo do Alemão. Jantei com amigos que moram na subida. Estava subindo devagar, pois sou sozinho e a natureza do meu trabalho implica em se mostrar, ao invés de se disfarçar.
A imprensa brasileira deve grandes reportagens sobre o complexo do Alemão. O trabalho de Tim Lopes era aproximar morro e asfalto pela informação. Com todo o respeito pelos demagogos que cospem fogo com a morte dele, uma forma de honrá-lo seria prosseguir com a missão jornalística.



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