São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 2000


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São Tomé das Letras tira leite de suas muitas pedras

O QUE FAZ o encanto de São Tomé das Letras, uma cidade mineira de pouco mais de 5.000 habitantes, situada a 1.250 metros de altitude?
Só viajando para ver. E foi isso que fizemos partindo do Rio de Janeiro, que fica a 356 quilômetros de distância.
Viajamos para o sul de Minas, região da estâncias hidrominerais e tomamos, a partir de Caxambu, uma estrada de terra, que fica a 42 quilômetros de São Tomé. Grande erro.
O melhor caminho é por Três Corações, onde o trecho de terra é de apenas cinco quilômetros.
Logo na entrada passamos por um mata-burro perigoso, que quase engoliu as duas grandes motos. Chegamos a São Tomé cobertos de poeira e, lá em cima, nos informaram que a estrada que usamos é tão problemática que a indústria automobilística costuma usá-la para testar a suspensão de seus novos modelos.
Uma vez no topo, passeando entre as casinhas de pedra, olhando as lojas que anunciam tarô e roupas indianas e peruanas, sentimos que chegamos a um lugar especial. É como se o tempo tivesse parado nos anos 60, e ainda vemos cruzar as ruas malucos de cabelo encaracolado com o violão nas costas, místicos à procura de uma súbita iluminação, turistas de meia-idade que já encontram uma infra-estrutura confortável para uma estada mais longa.
Segundo a lenda, São Tomé das Letras nasceu com a fuga de um escravo para a montanha. Em alguma versões, ele fugiu porque transou com a irmã de seu amo; em outras, fugiu porque se cansou de maus-tratos. Na montanha, o escravo encontrou um homem vestido de branco, possivelmente um jesuíta fugindo da perseguição que foi movida contra eles.
O escravo foi orientado a voltar para a fazenda e levou um bilhete para seu amo. Foi perdoado, e o dono da fazenda, de posse do bilhete, subiu até a montanha onde ele estava escondido e achou numa gruta uma imagem de um santo entalhado em madeira. Era São Tomé. Na gruta havia inscrições dos índios cataguases, daí o São Tomé das Letras.
Deveria ser São Tomé das Pedras. Tudo na cidade gira em torno das pedras. Existem mais de 20 pedreiras que exploram o quartzo e produzem cada uma mais ou menos 500 metros quadrados por mês. É uma pedra branca da qual se aproveita apenas 10% do que se quebra; o resto fica brilhando ao sol, como se em alguns lugares a cidade estivesse coberta de neve.
As pedras atraíram os místicos, que estabeleceram conexões entre São Tomé e Cuzco, no Peru. Como é uma cidade alta, com céu limpo, muitos passam as noites olhando para cima. Daí inúmeras ocorrências de objetos não-identificados. Um pesquisador da cidade, Oriental Luís Noronha, Tatá, já escreveu dois livros sobre as estranhas aparições e também sobre os mistérios de São Tomé, que ele chama de útero da terra.
Inscrições misteriosas, cavernas, objetos não-identificados, casas de pedra no alto da montanha salpicada de pontos brancos -tudo isso contribuiu para que São Tomé se tornasse um ponto de turismo ecológico e esotérico.
Algumas comunidades exploram o primeiro, outras, o segundo. Em ambos os casos, os turistas são recebidos em chácaras e passam uma temporada meditando ou conhecendo algumas das dez bonitas cachoeiras da região.
Para quem não quer isso, São Tomé oferece uma base convencional com pousadas que custam entre R$ 5 e R$ 20 por pessoa e alguns pontos mais sofisticados, como o restaurante Alquimista, que funciona num casarão restaurado e oferece cozinha mineira (lombo de porco, tutu etc.) e pratos vegetarianos, como berinjela recheada de carne de soja.
Para quem fica apenas na cidade, além da gruta que deu origem ao nome de São Tomé há um comércio new age, esotérico, enfim, o que vemos nas feiras alternativas das grandes cidades, mas com alguns produtos importados e a bom preço. A igreja matriz, pintada por um discípulo de Aleijadinho, Joaquim da Natividade, está em bom estado e vale a pena ser vista, embora haja proibição de fotografias.
O paraíso esotérico tem alguns problemas bem terrenos. Não há tratamento de esgoto, e a água tem de ser bombeada do vale do Cantagalo, onde estão algumas das comunidades religiosas. Esses dois pontos são interligados e vitais: o esgoto pode poluir as corredeiras, que não só mandam a água para cima como são ponto de atração turística.
Ninguém sabe como São Tomé das Letras entrou em roteiros internacionais e recebe também um bom número de estrangeiros em busca das experiências místicas ou mesmo da forte sensação de estar num outro mundo, transitando entre casinhas de pedras, calçamento de pedras irregulares, igrejas de pedra e muitos cães, pois a cidade parece cheia deles.
Como eles são muitos e carentes, se você agrada um cachorro na rua, provavelmente ele vai ser um companheiro fiel por todo o dia, entrando em todos os lugares com naturalidade.
Com esse potencial, São Tomé merecia um pouco mais de atenção. Como são poucos eleitores, lá não chegam deputados ou governadores. As inscrições dos índios começam a desaparecer, casas de pedra começam a ser demolidas -enfim, não há garantias de futuro. O pequeno dínamo econômico do turismo ainda não é forte o bastante para resolver sozinho o problema da cidade. As pedreiras continuaram sua paciente desmontagem da montanha e o entulho se acumula em vários pontos da cidade.
No momento, a luta política local vai colocar em choque duas concepções. Mas a que defende um turismo ambiental, como em quase todos os lugares desse tipo, envolve mais os que vieram das grandes cidades. Não se pode criticar as pedreiras num lugar onde tantos dependem dela.
Com todos os problemas, São Tomé é um desses pontos luminosos do Brasil, que só a resistência de pequenos grupos pode salvar do impacto dos problemas econômicos e da indiferença oficial.
Por incrível que pareça, apesar de nossas máquinas chegarem arruinadas, São Tomé é um paraíso para a prática do motociclismo. Mas só para quem tem motos altas, "off-road", uma especialidade dos mineiros que gostam de galgar montanhas em duas rodas.


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