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São Paulo, segunda-feira, 19 de maio de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Educar para a liberdade ao som do tiroteio

A crise de segurança no Rio repercute dentro de casa, onde se torna cada vez mais difícil definir os contornos de uma educação adequada. Não se trata daquela velha história de ficar com o coração na mão quando os adolescentes saem para uma noitada.
É um problema mais amplo, que se revela também nos detalhes da vida cotidiana.
Muitos de nós já acordaram de madrugada com o som de tiroteios. Não é como nos programas humorísticos, mas acontece de vez em quando. Ratatatá. As crianças também acordam e sabem que o bicho pegou não muito longe de casa. Eram fogos anunciando um bonde? Eram os próprios traficantes disputando espaço? Era a polícia? Como saber apenas com o matraquear das armas, uma vez que todos, policiais e bandidos, têm acesso ao mesmo equipamento, com vantagem para quem tem mais dinheiro e mais contatos em Miami?
O que pode fazer a educação libertária dos anos 60 diante de um quadro desses? Ela tem sua fragilidade, já criticada pela própria geração. Mas com o tempo, o lema da escola britânica Summerhill, liberdade com responsabilidade, foi se reduzindo apenas ao último termo.
Essa deturpação da perspectiva pedagógica preparou o terreno para grandes dificuldades.
No Rio de hoje, você precisa, simultaneamente, educar para a presença do tráfico de drogas e para os mínimos reflexos de autodefesa. Isso pode deixar a pessoa sentindo-se um pouco culpada, achando que está inibindo a espontaneidade do adolescente. Mas não dá, por exemplo, para esquecer a chave na portaria e ficar esperando que alguém abra a porta, de noite, no escuro. Num desses momentos de descuido, tudo pode acontecer.
É uma fantasia supor que o adolescente jamais entrará em contato com drogas. Mais realista do que isso é partir do princípio de que, estatisticamente, a chance de acontecer é muito grande. Logo, a preparação tem que partir dessa possibilidade real. Da mesma maneira, é uma ilusão pensar que vai se viajar de ônibus e jamais ser assaltado.
Quantos celulares, relógios e cordões serão perdidos até que se perceba essa realidade? Todas essas pequenas bobagens do cotidiano vão tomando conta da vida e, de repente, você, do alto de sua preocupação com o rumo do mundo, percebe que alguma coisa está errada perto de você.
Uma das lições do jornalismo no final da década de 50 dizia que, se um cachorro morre na sua rua, isso é mais importante do que um terremoto na China. Sempre fui crítico em relação a isso e, no fim do século, já se falava até que o bater de asas de uma borboleta na China, quem dirá um terremoto, teria repercussões na sua vida.
Reconhecer a importância dessa crise cotidiana não significa romper com a preocupação planetária. Ao contrário, uma visão mais precisa de como todos os elementos se interrelacionam é que poderá nos trazer algum alívio.
Para começar, é preciso, talvez, reconhecer que sua perspectiva pedagógica não é a única influência sobre os meninos. Televisão, escola, amigos, a enorme usina de identidade que se tornou o consumo, criando novas e, às vezes, artificiais necessidades subjetivas, tudo isso deveria ser computado, ainda que seja apenas para atenuar a culpa de quem acha que algo andou errado em casa.
Num lugar como o Rio, para enfrentar a onda de violência, não basta apenas que a polícia se organize. Será necessário também que a própria população se transforme e adote níveis de organização variados. Israel, Cuba e Suíça são exemplos de saídas nacionais, cada uma com o seu estilo. Os próprios norte-americanos, depois do 11 de setembro, exercitam constantemente os reflexos de defesa da sociedade.
No campo das drogas, o que predomina hoje não me parece produtivo. Para começar, a idéia de guerra contra as drogas. A simples menção a um estado de guerra aumenta a necessidade de consumo. E as campanhas de culpabilização dos consumidores, por mais bem intencionadas que sejam, deveriam perceber que a sensação de culpa pode levar ao oposto simétrico do que desejam.
No Rio, onde a proximidade do caos é uma realidade, o peso dos problemas dificulta o encontro de certezas. Mas algumas têm de existir como condição de uma perspectiva pedagógica.
Enquanto tentamos trabalhar, aqui embaixo, a onipotência dos filhos, esquecemos que, lá em cima, onde acontecem os tiroteios, são garotos de metralhadora na mão que abrem seu caminho à bala. É essa nova geração de olheiros, fogueteiros, gerentes e seguranças que ocupa os principais espaços do plano de carreira no tráfico de drogas.
É preciso toda uma política para transição, pois ainda teremos de esperar toda essa onda, de penas maiores e de novas penitenciárias, para obter algum avanço no debate, dominado, agora, pelos falcões .
É uma situação que me lembra dos debates na Comissão de Minorias. A bancada do norte entrava com um grupo do "mata-e-esfola" sempre que o tema eram os índios. Os mais moderados diziam para nós: "Vamos esperar essa turma concluir seu recado para que a gente discuta melhor nossas divergências".
Pensávamos que, no fundo, estavam articulados. O grupo radical era apenas um bode na sala. O problema nas questões de segurança é que o bode na sala se recusa a sair, porque representa as ilusões da maioria. É um "everybode", como dizia meu querido Chico Nelson.



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