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ENTRE "CERROS"
Apesar de saqueada durante o golpe militar, casa em forma de barco salvaguarda a obra do poeta
La Chascona era o barco urbano do capitão Neruda
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO CHILE
Ricardo Neftalí Reyes Basoalto
gostava de barcos. Por isso, construiu um só para ele: não no mar,
mas em terra. Porque ele não era
capitão. Era poeta. Apesar de capitanear a literatura do Chile
-nesse caso, não com o nome de
Ricardo, mas de Pablo. Neruda.
O notável escritor chileno, nascido em 1904, em Parral, e morto
em 1973, deixou um pouco de
suas paixões e muito da atmosfera
de sua obra no número 0192 da
calle Fernando Márquez de la Plata, no bairro Bellavista.
Lá está uma das três casas do
poeta que hoje viraram museus
em sua homenagem (as outras estão em Isla Negra e Valparaíso).
Todas construídas por ele -com
formatos que lembram barcos-,
conservando livros, móveis, anotações, louças, bibelôs, almofadas,
cortinas, quadros e todo o resto
que o escritor e também diplomata juntou (era um colecionador
voraz, de vasos a carrancas de
barco) em suas inúmeras viagens
pela Europa, Ásia, América...
A casa foi erguida em 1953, para
Matilde Urrutia -amante que se
tornou sua mulher (a terceira e última). E ganhou seu apelido: la
Chascona, ou a mulher de cabelos
desarrumados, como Neruda
costumava chamá-la.
O terreno é todo irregular; daí a
casa estar recortada em três pedaços. A cozinha, a sala de jantar e
um quarto de visitas em um; a biblioteca e um bar em outro; o
quarto do casal e a sala no último.
Cada um construído em uma
época diferente. Todos com tetos
baixos, formas arredondadas,
grandes janelas ou escotilhas, móveis retirados de antigos navios.
Era o barco do "enamorado do
mar, mas capitão de terra", como
Neruda dizia. Apaixonado por
embarcações, estranhamente
morria de medo do oceano.
Hoje só é possível visitar a casa
com guias, que, em diferentes línguas, contam que o escritor só escrevia em tinta azul ou verde (por
serem cores do mar), mostram
quadros do mexicano Diego Rivera (1886 - 1957) e dos brasileiros
Carybé (1911-1997) e José Pancetti
(1902-1958) e exibem o maior tesouro
da casa: o prêmio Nobel de Literatura recebido em 1971.
Os guias também dizem que, no
meio da casa, corria um canal
-descrito pelo poeta em 1967 como a "água que corre escrevendo
em seu idioma". Corria, porque
hoje não existe mais o canal. Assim como os 9.000 livros da biblioteca, as coleções de deuses da
felicidade, os quadros de Picasso,
Miró e Frida Kahlo...
Os objetos e móveis que agora
estão expostos na Chascona são
sobreviventes. A casa foi saqueada e destruída em setembro de
1973, durante o golpe militar que
provocou o suicídio do presidente
socialista Salvador Allende, no dia
11 daquele mês, e colocou no poder o ditador Augusto Pinochet.
Comunista, Neruda era figura importante no cenário político chileno. Havia sido senador em 1945 e
só desistiu da candidatura à presidência em favor de Allende.
Como se espelhasse o pesar do
seu país, o poeta, que estava com
câncer, adoeceu mais ao saber da
morte do presidente e da destruição da Chascona. Morreu pouco
tempo depois, em 23 de setembro.
Com o canal destruído, a casa
foi inundada. Mas, mesmo nessas
condições, Matilde decidiu velar
Neruda ali, como uma espécie de
denúncia do que ocorria no Chile.
Assim, o corpo do poeta do mar
ficou embebido naquela atmosfera úmida, com o cheiro das paredes, móveis e livros molhados
inundando o ambiente. Foi a última viagem da Chascona com seu
capitão.
(JULIANA DORETTO)
La Chascona - Fernando Márquez de La
Plata, 0192; www.fundacionneruda.org. De terça a domingo, das 10h às
18h. Janeiro e fevereiro, até as 19h. Ingresso: 2.500 pesos (R$ 10,37; visitas
guiadas em espanhol).
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