São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 2006

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ENTRE "CERROS"

Apesar de saqueada durante o golpe militar, casa em forma de barco salvaguarda a obra do poeta

La Chascona era o barco urbano do capitão Neruda

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO CHILE

Ricardo Neftalí Reyes Basoalto gostava de barcos. Por isso, construiu um só para ele: não no mar, mas em terra. Porque ele não era capitão. Era poeta. Apesar de capitanear a literatura do Chile -nesse caso, não com o nome de Ricardo, mas de Pablo. Neruda.
O notável escritor chileno, nascido em 1904, em Parral, e morto em 1973, deixou um pouco de suas paixões e muito da atmosfera de sua obra no número 0192 da calle Fernando Márquez de la Plata, no bairro Bellavista.
Lá está uma das três casas do poeta que hoje viraram museus em sua homenagem (as outras estão em Isla Negra e Valparaíso). Todas construídas por ele -com formatos que lembram barcos-, conservando livros, móveis, anotações, louças, bibelôs, almofadas, cortinas, quadros e todo o resto que o escritor e também diplomata juntou (era um colecionador voraz, de vasos a carrancas de barco) em suas inúmeras viagens pela Europa, Ásia, América...
A casa foi erguida em 1953, para Matilde Urrutia -amante que se tornou sua mulher (a terceira e última). E ganhou seu apelido: la Chascona, ou a mulher de cabelos desarrumados, como Neruda costumava chamá-la.
O terreno é todo irregular; daí a casa estar recortada em três pedaços. A cozinha, a sala de jantar e um quarto de visitas em um; a biblioteca e um bar em outro; o quarto do casal e a sala no último. Cada um construído em uma época diferente. Todos com tetos baixos, formas arredondadas, grandes janelas ou escotilhas, móveis retirados de antigos navios. Era o barco do "enamorado do mar, mas capitão de terra", como Neruda dizia. Apaixonado por embarcações, estranhamente morria de medo do oceano.
Hoje só é possível visitar a casa com guias, que, em diferentes línguas, contam que o escritor só escrevia em tinta azul ou verde (por serem cores do mar), mostram quadros do mexicano Diego Rivera (1886 - 1957) e dos brasileiros Carybé (1911-1997) e José Pancetti (1902-1958) e exibem o maior tesouro da casa: o prêmio Nobel de Literatura recebido em 1971.
Os guias também dizem que, no meio da casa, corria um canal -descrito pelo poeta em 1967 como a "água que corre escrevendo em seu idioma". Corria, porque hoje não existe mais o canal. Assim como os 9.000 livros da biblioteca, as coleções de deuses da felicidade, os quadros de Picasso, Miró e Frida Kahlo...
Os objetos e móveis que agora estão expostos na Chascona são sobreviventes. A casa foi saqueada e destruída em setembro de 1973, durante o golpe militar que provocou o suicídio do presidente socialista Salvador Allende, no dia 11 daquele mês, e colocou no poder o ditador Augusto Pinochet. Comunista, Neruda era figura importante no cenário político chileno. Havia sido senador em 1945 e só desistiu da candidatura à presidência em favor de Allende.
Como se espelhasse o pesar do seu país, o poeta, que estava com câncer, adoeceu mais ao saber da morte do presidente e da destruição da Chascona. Morreu pouco tempo depois, em 23 de setembro.
Com o canal destruído, a casa foi inundada. Mas, mesmo nessas condições, Matilde decidiu velar Neruda ali, como uma espécie de denúncia do que ocorria no Chile. Assim, o corpo do poeta do mar ficou embebido naquela atmosfera úmida, com o cheiro das paredes, móveis e livros molhados inundando o ambiente. Foi a última viagem da Chascona com seu capitão. (JULIANA DORETTO)

La Chascona - Fernando Márquez de La Plata, 0192; www.fundacionneruda.org. De terça a domingo, das 10h às 18h. Janeiro e fevereiro, até as 19h. Ingresso: 2.500 pesos (R$ 10,37; visitas guiadas em espanhol).


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