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São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 2003

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FERNANDO GABEIRA

Uma ilha cercada de culpa por todos os lados

Quando se levanta um tema polêmico, como o da onda repressiva em Cuba, o mínimo que acontece é apanhar. Surgem cartas de quem considera uma capitulação aos interesses norte-americanos, cartas protestando contra o silêncio e, finalmente, as que criticam por que a intervenção foi tímida.
O singular desse debate de agora é que ambas as partes, defensores e adversários da onda repressiva, se acusam de desinformação. As autoridades do governo dizem que a versão correta está nas publicações oficiais e que nós fomos enganados pela imprensa. A rede de opositores democráticos afirma, por seu lado, que o grande problema na ilha é exatamente o fato de a maioria só ter acesso às versões oficiais.
Meu foco é a posição brasileira, a necessidade de romper com uma visão romântica da Revolução Cubana, congelada na década de 60 e alimentada por viagens oficiais cuidadosamente planejadas. Aqui, no Brasil, estamos todos parcialmente desinformados.
Uma evidência foi a sabatina do novo embaixador brasileiro em Cuba, Tilden Santiago, realizada em 1º de abril, quase duas semanas depois da onda de prisões iniciada em 18 de março. Nem ele mencionou o assunto, nem os senadores perguntaram. Por mais que se procure nas atas da sabatina, é impossível achar os traços de uma Cuba moderna, com uma oposição de intelectuais que criam agências independentes de notícia, uma presença americana ativa e um debate internacional crescente sobre a eficácia do embargo econômico.
Muitos afirmam que o grande efeito colateral da guerra do Iraque foi a onda repressiva que arrastou os tímidos passos do governo rumo ao respeito aos direitos humanos. Relatórios da Anistia Internacional, em janeiro, indicavam que a ditadura de Fidel Castro havia libertado nove prisioneiros de consciência. Inspirado pela operação "choque e pavor" no Iraque, o aparato repressivo prende e condena 78 pessoas e fuzila três sequestradores.
A tensão entre Cuba e EUA não se limita à presença de um representante americano em Havana, mantendo contato com a oposição. Ela pode ser vista também na política de vistos entre os dois países. Bush deve alterar, nesta semana, as regras de visitas a Cuba, cancelando um programa povo a povo, inaugurado por Clinton, que levava 25 mil turistas à ilha. Por outro lado, o fechamento de vistos americanos a cubanos estimula atos desesperados de fuga do país. O jogo de sanções deve prosseguir.
Colocados frente a frente, falcões americanos e uma ditadura marxista que se recusa a fazer uma abertura democrática e soberana, estamos diante de uma crise em potencial e sem instrumentos para uma política alternativa, pois ainda cantamos "Guantanamera", usamos camisetas dizendo que "é preciso endurecer sem perder a ternura" e aprovamos a indicação de embaixadores sem debater essas coordenadas para avaliar sua capacidade teórica e profissional de se mover nesse campo minado.
Todos somos culpados. Na década de 80, limitei-me a discutir a repressão aos homossexuais em Cuba com Herbert Daniel. Mais tarde, ele e Betinho fizeram algumas críticas à forma como eram tratados os soropositivos. Lendo um relato sobre o hospital de Los Cocos, chego à conclusão de que ainda há vestígios da repressão contra os portadores de HIV.
No princípio dos anos 90, Antônio Rangel Bandeira lançou seu livro pela Record. O título era "Sombras no Paraíso", sobre a crise da Revolução Cubana. O prefácio foi escrito por Mário Soares (ex-presidente de Portugal). O livro de Rangel Bandeira analisava o processo repressivo, se não me engano, até 85, quando foi fuzilado o general Arnaldo Uchôa. Era para ter despertado um grande debate na esquerda democrática. Isso não aconteceu.
No fim do século 20, a publicação dos livros de Reinaldo Arenas e também a exibição do filme "Antes do Anoitecer" permitiram uma visão melhor de como toda uma geração de brilhantes intelectuais cubanos foi sacrificada pela revolução, considerados individualistas burgueses ou mesmo cúmplices do imperialismo e outros insultos reservados aos que discordam e insistem em manter sua liberdade.
Apesar de todas as oportunidades de um debate e mesmo da formação de um núcleo que estudasse a questão cubana de forma independente, a visão romântica da revolução predominou, petrificando também alguns jornalistas. Independentemente de defender, por exemplo, a integridade de Raúl Rivero ou mesmo afirmar que existe uma oposição em Cuba, que é ao mesmo tempo contra a ditadura e contra a ambição imperial, trata-se agora de afirmar que algo importante está acontecendo na ilha e nos EUA.
Sem informação livre e abundante, não teremos condições de orientar uma diplomacia preventiva para intervir nessa potencial crise hemisférica. Que os cubanos hesitem em conhecer os meandros do aparato repressivo é compreensível, porque lá você pode ser condenado a muitos anos de cadeia. Aqui, nossa renúncia ao conhecimento é voluntária. Os agentes secretos refugiaram-se no sentimento de culpa diante de uma ilha bloqueada pelo gigante norte-americano. Nada temos a perder, exceto nossa ignorância, essa é a verdade.


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