São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

O nada franco-atirador de Washington

O franco-atirador de Washington pode estar preso neste momento. No entanto o mais certo é que o roteiro de cinema baseado em sua história já tenha a primeira versão, antes mesmo de ele ser achado pela polícia.
De uma forma diferente de Osama bin Laden, o franco-atirador tornou-se uma figura mundial. Todos os jornais do mundo falam de sua van creme ou branca, estudiosos de tarô analisam suas mensagens e astrólogos tentam adivinhar pelo mapa astral quando ele voltará a atacar.
Discute-se quem fará o papel de xerife (Denzel Washington?) e muitos outros detalhes que o conforto da internet permite. Mas a vida dos habitantes da região não está nada fácil. Os conselhos de segurança servem para aumentar o medo: não ficar parado, andar em ziguezague, enfim, agir como se estivesse na alça de mira do fuzil do franco-atirador, tentando escapar com vida.
Dizem os especialistas que há um ponto chamado abricó, entre o final da coluna e a cabeça, que é o ideal para o tiro perfeito. A vítima já cai sem sentidos e morre em poucos segundos. Os "snipers", franco-atiradores treinados, lançaram uma nota negando ao assassino de Washington essa condição. Eles treinaram para obedecer ordens, ajudar o país, salvar vítimas. Seu tiro certeiro é um gesto de patriotismo, que não pode ser confundido com o esporte macabro de sair atirando em donas-de-casa que saem do supermercado.
Até o momento em que escrevo estas linhas, o franco-atirador só tinha sido visto por uma testemunha. Aviões militares iriam sobrevoar a cidade para localizá-lo, todas as câmeras instaladas em lugar público estavam sendo monitoradas com rigor.
Esse franco-atirador não merece ter o nome reservado aos soldados de elite.
É um matador em série com características de um terrorista moderno. Por que moderno? Os terroristas do princípio do século, como na peça "Os Justos", de Albert Camus, voltavam de uma ação sem detonar a bomba, porque havia crianças e mulheres inocentes em torno do arquiduque.
Os terroristas pós-modernos borraram essa distinção entre inocentes e soldados armados. Era uma distinção que sobrevivia inclusive no direito internacional. Mas agora, para eles, ninguém é inocente, todos são culpados por estarem em Nova York, por exemplo, ou por habitarem um país aliado aos americanos, ou mesmo por fazerem turismo em Bali, na Indonésia ou nas Filipinas.
O matador em série de Washington foi um pouco mais longe. Em vez de simplesmente apagar a distinção entre militares em guerra e inocentes, no seu universo moral, fez uma opção pelos últimos. Uma dona-de-casa, grávida, fazendo compras para mudar de apartamento, feliz por ter vencido o câncer, passa a ser um alvo ideal.
O destino dos cariocas e dos moradores de Washington tem um ponto em comum: todos estão com medo das balas de fuzil. No Rio, apesar de tudo, a lógica das noites de tiroteio ainda foi a do princípio do século: atacar o símbolo do poder, o palácio tropical do governo.
Mesmo aqui, nada garante previsibilidade nos ataques.
A capital dos Estados Unidos e a ex-capital brasileira andam em ziguezague para fugir dos tiros de fuzil. Aqui, a presença do tráfico de drogas indica, pelo menos, um caminho para a busca de saídas. Mas, e o matador de Washington, quem poderá analisar adequadamente as causas dos seus crimes e buscar uma política para que isso não mais aconteça?
Houve muitas explosões de ódio nos Estados Unidos. Gente entrando em escola, fuzilando quem estivesse na frente. Mas o atirador de Washington é frio e prepara sua van branca ou creme, Astra ou Ford, para mais um assassinato, com a calma de quem planeja uma viagem de férias.
Ele não apenas radicalizou a desvalorização moderna da vida humana. Muito possivelmente perambula pelas ruas em busca de seres atraentes que possam ser libertos do inferno de estar no mundo. Deve se sentir um salvador em busca de quem mereça a suprema benção de um tiro no meio da testa.
Vamos esperar um passo em falso e, finalmente, virá a grande produção cinematográfica. Sem nunca deixar de rezar pelas esperanças fuziladas neste princípio de século.


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