São Paulo, quinta-feira, 26 de março de 2009

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FESTA CRISTÃ

Vaticano atrai com busca por Deus e arte

Turismo descobriu na peregrinação a chave de um mercado que retira viés banal e agrega valor à viagem

LUIZ FELIPE PONDÉ
COLUNISTA DA FOLHA

São diversas as razões que podem levar uma pessoa a visitar o Vaticano. Entre elas, a pior é ir para reclamar contra seus tesouros. Argumentos conhecidos como "a riqueza do Vaticano é contra o espírito do cristianismo" são comuns e têm a sua validade no campo do debate ético, mas estragam a experiência estética e religiosa que podemos ter numa visita ao centro do catolicismo mundial.
O fato evidente é que seus tesouros artísticos e históricos são uma excelente oportunidade para experiências de caráter mais profundo no que se refere a uma viagem para locais em que você se sente num centro da cultura ocidental.

Cidade Eterna
Roma é, na tradição do cristianismo antigo, o lugar onde Pedro e Paulo descansaram dessa vida de sofrimentos. Suas relíquias estariam lá. Por isso, essas relíquias cumprem o papel, segundo o historiador do cristianismo antigo Peter Brown, de fundar Roma como centro de peregrinação e autoridade religiosa.
Nasce aí o seio onde se construirá a identidade do Vaticano como um dos dois centros do cristianismo antigo (sendo o outro a terra de Israel).
Ao longo dos séculos, a Cidade Eterna acumulará muitas das energias artísticas de grandes gênios da pintura e da escultura, principalmente no período que vai do final da Idade Média até o Renascimento, momento essencial da história da arte e de seus mais notáveis desenvolvimentos estéticos.

Alma de viajante
Por isso o Vaticano é um dos principais centros da produção artística no âmbito da busca de Deus (maior referência do Sagrado no mundo ocidental). Proponho "o espírito do peregrino", se você for fazer uma viagem para lá.
Há algum tempo a indústria do turismo descobriu a peregrinação como chave de mercado que agrega um valor diferenciado à intenção dos viajantes, diminuindo, assim, o viés banal presente em muitas formas do turismo.
Dos monastérios e igrejas da Europa, passando pelos espaços vazios do Saara, da Sibéria e da Mongólia, tocando a arquitetura misteriosa e distante da Índia, da China, do Butão ou do Vietnã, o que se busca nesse movimento é a voz profunda da alma humana clamando na vastidão do mundo.
As peregrinações, é fato, são uma prática antiga na religião e na filosofia. E, na realidade, o que está em jogo nas peregrinações é o autoconhecimento ligado à busca do sentido último da vida.
Desde os primórdios da Grécia e do judaísmo (o cristianismo é o encontro, num cenário dominado pela grandiosa civilização romana, desses dois mundos antigos), mulheres e homens fogem para o deserto, em busca de si mesmos e de Deus (o que os une na caminhada é a intenção de descobrir a verdade da vida e do mundo).
A caminhada sempre significa um momento em que suspendemos a banalidade do cotidiano e nos abrimos para os mistérios escondidos por trás dessas banalidades. O espaço exterior a ser percorrido representa a viagem interior a ser realizada.
Enquanto no deserto são os elementos "naturais" (cavernas, areia, calor, fome, solidão geográfica, ausência de civilização) que cumprem o papel de ferramentas da peregrinação, no Vaticano é a arte. Da Vinci, Michelangelo, Caravaggio, entre outros, são aqui os "profetas" que levam você pelas mãos adentro da aventura da alma em busca de Deus.
Como esses grandes artistas viram essa busca? Nas formas, nas cores e nas formulações estéticas dadas, você encontra algumas respostas possíveis para ela: o corpo torturado de Cristo, as lágrimas incontidas das mulheres, o rosto em chama dos homens, a alegria do Deus-homem que vence a morte contam a história da luta entre o medo e a esperança.
Na narrativa da vida do homem Jesus, encontramos as chaves de sua transformação na figura do Cristo. Em meio a essa narrativa, o momento de sua morte é um marco.
Se pensarmos em Sua vida como a peregrinação de Deus no mundo, os momentos que precedem Sua paixão, os detalhes de Sua agonia, e os eventos que marcam Sua ressurreição (tudo isso contido no que a tradição denomina Semana Santa) são alguns dos instantes mais importantes de Sua peregrinação.
Por isso, as cenas que se repetem à exaustão representando Suas amizades, Suas dores e Sua glória. Do Deus que viaja pelo mundo ao homem que contempla essa viagem, a Semana Santa é um encontro marcado por sangue, violência, traição e esperança, experiências profundamente humanas.
Nem sempre, infelizmente, conseguimos em meio ao ruído causado pelo "turismo selvagem" as melhores condições para uma viagem de qualidade.
O acervo artístico do Vaticano é um diálogo com a visita de Deus ao mundo. Por isso, o ideal para uma visita como essa é evitar participar de grandes grupos. E não ter pressa. A sofisticação técnica desses mestres e o drama de Deus e dos homens representado nessa técnica merecem todo o cuidado de quem a contempla.
Além de um bom livro ou um bom guia ilustrado que fale do momento artístico em que viveu a maior parte desses mestres, seria boa uma leitura prévia dos eventos que marcam a Semana Santa (o Evangelho ainda é a melhor fonte narrativa para isso): a Santa Ceia, a agonia em Gethsâmani, a cruz e a morte, a ressurreição.
Menos ansiedade turística e mais silêncio também fazem bem ao viajante-peregrino que tem a sorte de experimentar "in loco" a Semana Santa vista pelos olhos e pelas mãos de alguns dos maiores exemplos do que de melhor a arte sacra pode nos oferecer como representação da alma humana em busca de sua origem e de seu destino.


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