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FERNANDO GABEIRA
As amendoeiras enlouquecem dez anos depois
Neste momento , em que
os olhares se voltam para
Johannesburgo, as amendoeiras
do Rio enlouqueceram e começam a desfolhar no fim do inverno. Dá uma sensação de insegurança. Houve quem pensasse até
em cortá-las, perturbado com essa nudez temporã.
Há quem relacione esse capricho das amendoeiras com as enchentes na Europa e a nuvem de
poluição na Ásia. Não há base
científica para isso.
Mesmo a teoria do caos demanda estudos e trabalho duro para
estabelecer conexões aparentemente bizarras.
Uma coisa que já poderia ser incorporada ao nosso saber é o erro
dos economistas de chamar as
condições naturais de externalidade. Não existe mais essa fronteira entre interior e exterior. Ulrich Beck, em seu livro "Sociedade
do Risco", mostra como vivemos
dentro de uma segunda natureza,
transformada pela ação humana.
Não há mais nada exterior ao
mundo social e, justiça seja feita,
esse "insight" foi de Karl Marx.
Vale a pena estudar o mecanismo
que nos faz jogar para fora a causa de nossos problemas. Isso acontece mesmo quando o conceito de
natureza não está em jogo. Inventamos outro -o comunista, o judeu, o estrangeiro, o homossexual- e atribuímos a ele a razão
de nossos males.
Senti isso de uma forma aguda
num desses abraços em volta da
lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio.
Milhares de pessoas concentram-se nas margens e, de mãos dadas,
protestam contra a poluição, a
morte dos peixes, o sumiço dos
pássaros.
Estava de mãos dadas no protesto e, de repente, olhei para o lado e vi que tanto os secretários do
Estado quanto os do município
estavam ali conosco, de mãos dadas, protestando também. Foi então que perguntei: "A quem estamos pedindo a salvação da lagoa?
A Deus, a Zeus, a Shiva?"
Sem nos darmos conta, estávamos jogando a natureza para fora de nós, transformando nossos
dissabores num simples fato natural, como se não houvesse ação
humana no processo de degradação da lagoa e muito menos responsáveis por evitar e reverter
aquele processo.
Um dos secretários trazia um
bebê no colo e fechava os olhos
emocionado, enquanto se gritava
pela salvação da lagoa. Alguns diziam, felizes: "Que bom, o governo está conosco".
Mas ignoravam que o governo
estava conosco apenas para nos
ajudar a naturalizar o fenômeno
e buscar nos céus as causas e as
saídas para problemas que estavam bem enterrados aqui, no
chão do nosso cotidiano.
Dez anos depois da grande conferência ambiental, as amendoeiras discursam com folhas mortas.
Não há base científica para conectá-las aos grandes problemas
planetários. Mas também essa
questão precisa ser estudada melhor. De um modo geral, a ciência
nos demonstra fatores de perigo e
tomamos consciência deles. Muitos fatores de perigo, entretanto,
foram percebidos antes da admissão científica e sobreviveram como consciência de risco, apesar
da resistência dos especialistas.
Não se trata aqui de defender a
irracionalidade. Mas apenas uma
desconfiança de que a racionalidade técnico-científica não consegue responder ao conjunto de riscos e ameaças que envolvem nossa civilização.
Se as amendoeiras enlouquecem dez anos depois, por que não
enlouquecer com elas para tentar
explicar e superar o fenômeno
que nos coloca o descontrole vegetal? É ao menos uma alternativa
para a loucura dos economistas.
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