São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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FERNANDO GABEIRA

As amendoeiras enlouquecem dez anos depois

Neste momento , em que os olhares se voltam para Johannesburgo, as amendoeiras do Rio enlouqueceram e começam a desfolhar no fim do inverno. Dá uma sensação de insegurança. Houve quem pensasse até em cortá-las, perturbado com essa nudez temporã.
Há quem relacione esse capricho das amendoeiras com as enchentes na Europa e a nuvem de poluição na Ásia. Não há base científica para isso.
Mesmo a teoria do caos demanda estudos e trabalho duro para estabelecer conexões aparentemente bizarras.
Uma coisa que já poderia ser incorporada ao nosso saber é o erro dos economistas de chamar as condições naturais de externalidade. Não existe mais essa fronteira entre interior e exterior. Ulrich Beck, em seu livro "Sociedade do Risco", mostra como vivemos dentro de uma segunda natureza, transformada pela ação humana.
Não há mais nada exterior ao mundo social e, justiça seja feita, esse "insight" foi de Karl Marx. Vale a pena estudar o mecanismo que nos faz jogar para fora a causa de nossos problemas. Isso acontece mesmo quando o conceito de natureza não está em jogo. Inventamos outro -o comunista, o judeu, o estrangeiro, o homossexual- e atribuímos a ele a razão de nossos males.
Senti isso de uma forma aguda num desses abraços em volta da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio. Milhares de pessoas concentram-se nas margens e, de mãos dadas, protestam contra a poluição, a morte dos peixes, o sumiço dos pássaros.
Estava de mãos dadas no protesto e, de repente, olhei para o lado e vi que tanto os secretários do Estado quanto os do município estavam ali conosco, de mãos dadas, protestando também. Foi então que perguntei: "A quem estamos pedindo a salvação da lagoa? A Deus, a Zeus, a Shiva?"
Sem nos darmos conta, estávamos jogando a natureza para fora de nós, transformando nossos dissabores num simples fato natural, como se não houvesse ação humana no processo de degradação da lagoa e muito menos responsáveis por evitar e reverter aquele processo.
Um dos secretários trazia um bebê no colo e fechava os olhos emocionado, enquanto se gritava pela salvação da lagoa. Alguns diziam, felizes: "Que bom, o governo está conosco".
Mas ignoravam que o governo estava conosco apenas para nos ajudar a naturalizar o fenômeno e buscar nos céus as causas e as saídas para problemas que estavam bem enterrados aqui, no chão do nosso cotidiano.
Dez anos depois da grande conferência ambiental, as amendoeiras discursam com folhas mortas. Não há base científica para conectá-las aos grandes problemas planetários. Mas também essa questão precisa ser estudada melhor. De um modo geral, a ciência nos demonstra fatores de perigo e tomamos consciência deles. Muitos fatores de perigo, entretanto, foram percebidos antes da admissão científica e sobreviveram como consciência de risco, apesar da resistência dos especialistas.
Não se trata aqui de defender a irracionalidade. Mas apenas uma desconfiança de que a racionalidade técnico-científica não consegue responder ao conjunto de riscos e ameaças que envolvem nossa civilização.
Se as amendoeiras enlouquecem dez anos depois, por que não enlouquecer com elas para tentar explicar e superar o fenômeno que nos coloca o descontrole vegetal? É ao menos uma alternativa para a loucura dos economistas.


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