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FERNANDO GABEIRA
O rio São Francisco, um artefato histórico
Falavam em transpor o rio
São Francisco e fomos dar
uma olhada na sua nascente, na
serra da Canastra, em Minas.
Montou-se uma mesa branca na
montanha, onde comemos um
excelente queijo da região, diante
do filete de água que iniciava sua
longa trajetória para o mar. Pensei que bom seria conhecer todo o
São Francisco, dentro dos limites
de nossas tarefas cotidianas.
Dessa vez fui ao médio São
Francisco e contemplei suas
águas atravessando quatro fronteiras: Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas. Ainda bem que desistiram da transposição: o rio está mais frágil do que nunca.
No sobrevôo pela Bahia, era
possível ver ilhas de areia emergindo de seu leito.
Ali, antes mesmo de chegar aos
seus reservatórios, usinas e projetos de irrigação, era possível constatar que o rio São Francisco não
é apenas um acidente natural,
mas um artefato da história, um
rio da unidade nacional revelando no seu curso a guerra contra a
natureza.
Na escola, as professoras diziam
que o Egito é um presente do Nilo.
Trabalhavam com um livro de
Aroldo de Azevedo que tinha fotos singelas, com o crédito "foto
do autor", mostrando que ele visitou alguns lugares que descrevia.
Uma boa parte do Brasil, sem
desmerecer o trabalho humano, é
uma dádiva do São Francisco. Só
no pólo de exportação que visitei,
entre Petrolina e Juazeiro, exportam-se US$ 60 milhões em frutas
e com esse trabalho sobrevivem
quase 200 mil pessoas.
É no reservatório de Sobradinho, em Paulo Afonso, que descobrimos a importância do São
Francisco. As águas ali acumuladas regulam o abastecimento das
usinas de Paulo Afonso e de Xingó, que produzem a energia do
Nordeste. E ali o drama é nítido
nas marcas que revelam o nível
do São Francisco. De 28 bilhões de
m3 de volume útil, fomos reduzidos a 4,8 bilhões de m3, equivalentes a 17% do total.
As cidades que surgiram ao longo do lago, Pilão Arcado, Casanova, Sento Sé e Remanso, sem contar a própria Sobradinho, vivem
uma situação kafkiana.
As pessoas se instalaram à beira
do lago para aproveitar a fertilidade das terra úmidas.
As casas que construíram distam, agora, de seis a 12 quilômetros do espelho-d'água. O rio, que
para eles é uma dádiva, tornou-se
uma ausência sofrida, deixando
ao longo dos 4.000 km de perímetro longas mensagens punitivas:
pedra e areia.
A vazão do São Francisco começou a ser medida em 1929. Nos
primeiros anos, a média era de
3.000 m3/s. Com o passar do tempo, essa média caiu para 2.000
m3/s. Atualmente a vazão está reduzida a 600 m3/s.
Se o professor Aroldo de Azevedo fosse vivo, creio que nos daria
um castigo. Quando pouco, nos
obrigaria a examinar a história
do São Francisco e nos perguntaria se estamos realmente lúcidos
ao deixar esse rio agonizar.
A agonia do São Francisco,
bombardeado em vários pontos,
vai levando em suas águas ralas
inúmeras esperanças humanas;
esperanças transformadas em desespero, como é o caso das famílias expulsas para a construção
da barragem de Itaparica.
Perderam suas casas e terras
sob o argumento de que o país
precisava produzir energia. Nos
projetos de irrigação onde foram
instaladas, estão arriscadas a perder sua produção, por causa do
racionamento de energia.
Cachos de bananas com poucas
e raquíticas pencas, cocos com
enormes manchas negras, as provas estavam diante de nós: as vítimas são sempre as mesmas quando se produz energia ou se deixa
de produzi-la em quantidade necessária.
Ver tudo isso e terminar no museu arqueológico construído perto
da barragem de Xingó, em Alagoas, é uma espécie de choque final. As maquetes reproduzem a
vida dos habitantes pré-históricos, pescando e ornamentando as
pedras com seus desenhos à sombra de árvores generosas.
O rio deixou de ser o que era
quando foi tragado pela história.
Seu drama se expressa no reservatório de Sobradinho, que precisa liberar 1.000 m3/s para manter
as usinas funcionando à jusante.
Mas só está recebendo 600 m3/s,
portanto sangrando 400 m3/s.
O que dizer nas escolas do Brasil, quando falamos do São Francisco? Como explicar que o rio da
unidade nacional está definhando? Em outras palavras: o que vemos quando olhamos a unidade
nacional cruzando seu cânion,
atravessando fronteiras, afastando-se quilômetros das pessoas que
viviam à sua margem?
Quando você volta com um cacho de uvas vermelhas e generosas nas mãos, presente do São
Francisco, duas tarefas se cruzam
na consciência: impedir que o rio
morra e/ou conhecê-lo da nascente à foz, antes que ele morra.
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