São Paulo, segunda-feira, 27 de agosto de 2001

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FERNANDO GABEIRA

O rio São Francisco, um artefato histórico

Falavam em transpor o rio São Francisco e fomos dar uma olhada na sua nascente, na serra da Canastra, em Minas. Montou-se uma mesa branca na montanha, onde comemos um excelente queijo da região, diante do filete de água que iniciava sua longa trajetória para o mar. Pensei que bom seria conhecer todo o São Francisco, dentro dos limites de nossas tarefas cotidianas.
Dessa vez fui ao médio São Francisco e contemplei suas águas atravessando quatro fronteiras: Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas. Ainda bem que desistiram da transposição: o rio está mais frágil do que nunca.
No sobrevôo pela Bahia, era possível ver ilhas de areia emergindo de seu leito.
Ali, antes mesmo de chegar aos seus reservatórios, usinas e projetos de irrigação, era possível constatar que o rio São Francisco não é apenas um acidente natural, mas um artefato da história, um rio da unidade nacional revelando no seu curso a guerra contra a natureza.
Na escola, as professoras diziam que o Egito é um presente do Nilo. Trabalhavam com um livro de Aroldo de Azevedo que tinha fotos singelas, com o crédito "foto do autor", mostrando que ele visitou alguns lugares que descrevia.
Uma boa parte do Brasil, sem desmerecer o trabalho humano, é uma dádiva do São Francisco. Só no pólo de exportação que visitei, entre Petrolina e Juazeiro, exportam-se US$ 60 milhões em frutas e com esse trabalho sobrevivem quase 200 mil pessoas.
É no reservatório de Sobradinho, em Paulo Afonso, que descobrimos a importância do São Francisco. As águas ali acumuladas regulam o abastecimento das usinas de Paulo Afonso e de Xingó, que produzem a energia do Nordeste. E ali o drama é nítido nas marcas que revelam o nível do São Francisco. De 28 bilhões de m3 de volume útil, fomos reduzidos a 4,8 bilhões de m3, equivalentes a 17% do total.
As cidades que surgiram ao longo do lago, Pilão Arcado, Casanova, Sento Sé e Remanso, sem contar a própria Sobradinho, vivem uma situação kafkiana.
As pessoas se instalaram à beira do lago para aproveitar a fertilidade das terra úmidas.
As casas que construíram distam, agora, de seis a 12 quilômetros do espelho-d'água. O rio, que para eles é uma dádiva, tornou-se uma ausência sofrida, deixando ao longo dos 4.000 km de perímetro longas mensagens punitivas: pedra e areia.
A vazão do São Francisco começou a ser medida em 1929. Nos primeiros anos, a média era de 3.000 m3/s. Com o passar do tempo, essa média caiu para 2.000 m3/s. Atualmente a vazão está reduzida a 600 m3/s.
Se o professor Aroldo de Azevedo fosse vivo, creio que nos daria um castigo. Quando pouco, nos obrigaria a examinar a história do São Francisco e nos perguntaria se estamos realmente lúcidos ao deixar esse rio agonizar.
A agonia do São Francisco, bombardeado em vários pontos, vai levando em suas águas ralas inúmeras esperanças humanas; esperanças transformadas em desespero, como é o caso das famílias expulsas para a construção da barragem de Itaparica.
Perderam suas casas e terras sob o argumento de que o país precisava produzir energia. Nos projetos de irrigação onde foram instaladas, estão arriscadas a perder sua produção, por causa do racionamento de energia.
Cachos de bananas com poucas e raquíticas pencas, cocos com enormes manchas negras, as provas estavam diante de nós: as vítimas são sempre as mesmas quando se produz energia ou se deixa de produzi-la em quantidade necessária.
Ver tudo isso e terminar no museu arqueológico construído perto da barragem de Xingó, em Alagoas, é uma espécie de choque final. As maquetes reproduzem a vida dos habitantes pré-históricos, pescando e ornamentando as pedras com seus desenhos à sombra de árvores generosas.
O rio deixou de ser o que era quando foi tragado pela história. Seu drama se expressa no reservatório de Sobradinho, que precisa liberar 1.000 m3/s para manter as usinas funcionando à jusante. Mas só está recebendo 600 m3/s, portanto sangrando 400 m3/s.
O que dizer nas escolas do Brasil, quando falamos do São Francisco? Como explicar que o rio da unidade nacional está definhando? Em outras palavras: o que vemos quando olhamos a unidade nacional cruzando seu cânion, atravessando fronteiras, afastando-se quilômetros das pessoas que viviam à sua margem?
Quando você volta com um cacho de uvas vermelhas e generosas nas mãos, presente do São Francisco, duas tarefas se cruzam na consciência: impedir que o rio morra e/ou conhecê-lo da nascente à foz, antes que ele morra.



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