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FERNANDO GABEIRA
A magia de uma previsível segunda
No velho "Correio da Manhã", havia um colunista
chamado Guima, que escrevia
com uma técnica especial. Ainda
menino, eu lia os seus textos com
o prazer de quem desenrola os
fios de um carretel. Aliás, era esse
o nome de sua técnica, uma aplicação intuitiva e popular de algo
mais elaborado nos romances de
John dos Passos, aplicado depois
numa trilogia de Sartre.
Guima pegava os acontecimentos da semana e ia colocando um
ao lado do outro, como se estivessem ligados por um fio, como se
fossem parte do mesmo espetáculo. Assim, por exemplo: tchetchenos tomam o teatro em Moscou
fazendo 700 reféns, um jacaré come uma mulher na Austrália, o
velho Drummond, 100 anos, ganha homenagem no Brasil, seu
aniversário no escuro não é comemorado, duas granadas e uma
pistola quase entram no presídio
de Bangu, mas quem levou tiro
certeiro na nuca foi a advogada
do PCC em São Paulo.
Ele trabalhava com fatos acontecidos. Dos Passos e Sartre ligavam passado e presente, criavam
uma nova dimensão.
Essas lembranças literárias me
vêm à cabeça no momento em
que escrevo esta coluna, antes do
resultado eleitoral de domingo.
Na segunda-feira ninguém sabe
o que vai acontecer, diz o poema.
No entanto, neste fim de semana,
todos julgávamos saber o que
aconteceria na segunda-feira.
Não se trata, portanto, de um
dia perdido no tempo, mas de um
marco decisivo nas lutas que começaram com imigrantes e operários brasileiros e que culminam
agora com essa experiência inédita.
O grande responsável por essa
mudança é o Partido dos Trabalhadores, com suas duas décadas
de lutas e sacrifícios. Mas podem e
devem se alegrar com a vitória
aqueles que, sendo apenas companheiros de viagem, combateram os mesmos adversários e partilharam dos mesmos sonhos.
Essa vitória nos colhe, pelo menos a alguns de nós, já de cabelos
brancos, sem as ilusões do passado, sem a retórica de morrer pelo
povo, mas de viver humildemente
para ajudá-lo.
Se pudéssemos pelo menos antever esses momentos nas escuras
celas do Dops (Departamento de
Ordem Política e Social), nas noites de exílio em que o frio congelava nossa respiração, talvez ficássemos mais tranquilos, talvez não
nos desesperássemos, nós, que esperávamos mil sóis violentos.
Só a onipotência dos narradores permite fundir passado, presente e futuro. Só na arte poderia
voltar à cela de um Dops já desmantelado e dizer para o ratão
que a habitava: "Agora é Lula".
Ou despertar ao lado da amiga
sueca e dizer: "Hoje não corto
grama no cemitério, há reunião
da bancada do governo".
Empacado na fronteira da literatura e da política, protejo-me
da euforia e da grandiloquência.
O personagem da batalha de Alger talvez tenha dito algo adequado ao dizer que é difícil para
um movimento chegar ao governo, mas as dificuldades mesmo
começam depois que se chega lá.
O cenário que se abre hoje para
a América Latina foi classificado
por um cientista político chamado Michael Shifter como algo parecido com o realismo mágico de
Gabriel García Márquez.
Engraçado como parece magia
para eles algo que foi construído
passo a passo, com um trabalho
cotidiano e muitas vezes cinzento.
O que está acontecendo não
tem nada de realismo mágico, caro Shifter. Isso não significa que a
magia esteja proibida. Contarei
sempre com ela para voltar ao
passado e corrigir aquelas gélidas
noites com inacreditáveis boas
novas.
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