São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 2002

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FERNANDO GABEIRA

A magia de uma previsível segunda

No velho "Correio da Manhã", havia um colunista chamado Guima, que escrevia com uma técnica especial. Ainda menino, eu lia os seus textos com o prazer de quem desenrola os fios de um carretel. Aliás, era esse o nome de sua técnica, uma aplicação intuitiva e popular de algo mais elaborado nos romances de John dos Passos, aplicado depois numa trilogia de Sartre.
Guima pegava os acontecimentos da semana e ia colocando um ao lado do outro, como se estivessem ligados por um fio, como se fossem parte do mesmo espetáculo. Assim, por exemplo: tchetchenos tomam o teatro em Moscou fazendo 700 reféns, um jacaré come uma mulher na Austrália, o velho Drummond, 100 anos, ganha homenagem no Brasil, seu aniversário no escuro não é comemorado, duas granadas e uma pistola quase entram no presídio de Bangu, mas quem levou tiro certeiro na nuca foi a advogada do PCC em São Paulo.
Ele trabalhava com fatos acontecidos. Dos Passos e Sartre ligavam passado e presente, criavam uma nova dimensão.
Essas lembranças literárias me vêm à cabeça no momento em que escrevo esta coluna, antes do resultado eleitoral de domingo.
Na segunda-feira ninguém sabe o que vai acontecer, diz o poema. No entanto, neste fim de semana, todos julgávamos saber o que aconteceria na segunda-feira.
Não se trata, portanto, de um dia perdido no tempo, mas de um marco decisivo nas lutas que começaram com imigrantes e operários brasileiros e que culminam agora com essa experiência inédita.
O grande responsável por essa mudança é o Partido dos Trabalhadores, com suas duas décadas de lutas e sacrifícios. Mas podem e devem se alegrar com a vitória aqueles que, sendo apenas companheiros de viagem, combateram os mesmos adversários e partilharam dos mesmos sonhos.
Essa vitória nos colhe, pelo menos a alguns de nós, já de cabelos brancos, sem as ilusões do passado, sem a retórica de morrer pelo povo, mas de viver humildemente para ajudá-lo.
Se pudéssemos pelo menos antever esses momentos nas escuras celas do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), nas noites de exílio em que o frio congelava nossa respiração, talvez ficássemos mais tranquilos, talvez não nos desesperássemos, nós, que esperávamos mil sóis violentos.
Só a onipotência dos narradores permite fundir passado, presente e futuro. Só na arte poderia voltar à cela de um Dops já desmantelado e dizer para o ratão que a habitava: "Agora é Lula". Ou despertar ao lado da amiga sueca e dizer: "Hoje não corto grama no cemitério, há reunião da bancada do governo".
Empacado na fronteira da literatura e da política, protejo-me da euforia e da grandiloquência. O personagem da batalha de Alger talvez tenha dito algo adequado ao dizer que é difícil para um movimento chegar ao governo, mas as dificuldades mesmo começam depois que se chega lá.
O cenário que se abre hoje para a América Latina foi classificado por um cientista político chamado Michael Shifter como algo parecido com o realismo mágico de Gabriel García Márquez.
Engraçado como parece magia para eles algo que foi construído passo a passo, com um trabalho cotidiano e muitas vezes cinzento.
O que está acontecendo não tem nada de realismo mágico, caro Shifter. Isso não significa que a magia esteja proibida. Contarei sempre com ela para voltar ao passado e corrigir aquelas gélidas noites com inacreditáveis boas novas.


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