São Paulo, domingo, 2 de março de 1997.

Próximo Texto | Índice

CRÍTICA
Publicitários brincam de democracia na TV

FERNANDO DE BARROS E SILVA
especial para a Folha

Depois de Eduardo Suplicy e Benedita da Silva, que viveram seu dia como dublês de senadores e galãs de novela no ``Rei do Gado'', agora é a vez do PT, o partido inteiro, que resolveu brincar de garoto-propaganda na televisão.
A peça publicitária veiculada nesta semana pelo partido, diretamente inspirada em campanha recente da Folha, é uma espécie de atestado de óbito -e não apenas do PT, o que parece óbvio, mas também da política, o que é menos evidente.
Que houve apropriação deliberada de uma criação alheia, definida por um alto dirigente do partido como um ``exercício bem-humorado de metalinguagem'', é algo sobre o qual não restam muitas dúvidas.
Se essa ``cópia'' é passível de alguma forma de punição, é uma questão a ser resolvida pela Justiça. Não é esse, porém, o ponto que nos interessa aqui.
Mais grave do que o próprio plágio, é a atmosfera que o tornou possível. A situação é paradoxal. No momento em que os partidos ganham o direito de ir à TV, no instante em que conquistam espaço para falar a todo o país em horário nobre, eles sintomaticamente não têm mais nada a dizer.
Vivemos uma espécie de Lei Falcão às avessas: no regime militar, havia uma demanda política represada à força por uma legislação arbitrária e restritiva; hoje, conquistada a liberdade de expressão, ela se frustra imediatamente numa espécie de tagarelice vazia, que na maior parte das vezes não faz mais do que macaquear os avanços formais da técnica publicitária.
Jornal, idéias, fraldas, leite em pó, detergente, utopias e goiabada -tudo está subordinado à lógica tentacular da mercadoria. Ela é como a morte, nada lhe escapa.
Seria razoável esperar de um partido que ainda se diz de esquerda que tomasse esse constrangimento histórico como um problema a ser pensado, e não que embarcasse na nova onda sem medo de ser feliz.
A ``malandragem'' da propaganda petista tem como contraponto a ``falsa ingenuidade'' da recente campanha pela reeleição veiculada na TV pelos aliados de FHC. Nesta última, uma mocinha meio boboca, fazendo o tipo estudante bem-intencionada, dizia que o maior pecado que se poderia cometer agora seria colocar em risco a estabilidade, a moeda forte. Contra isso, reeleição na cabeça.
Num caso como no outro, seja o personagem o PT ou os áulicos de FHC, vende-se a ilusão de que algo substantivo ainda depende da política. Não depende. Queiramos ou não, o mundo todo entrou numa fase já corretamente batizada de ``era globalitária''.
Ao contrário do totalitarismo, cujo sucesso se devia à repressão a toda forma de oposição ou liberdade de expressão, os ``regimes globalitários'' incentivam ao máximo a parafernália democrática (eleições regulares, imprensa livre, instituições saudáveis etc.), ao mesmo tempo em que a transforma num ritual vazio, sem qualquer efeito sobre o curso do mundo.
Como crianças, estamos brincando de democracia. E nesse jogo, os publicitários são os craques.

Próximo Texto | Índice


Copyright 1996 Empresa Folha da Manhã