São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2000

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CRÍTICA

A mulher que virou bolo

ARMANDO ANTENORE

MUITO antes de a Tiazinha vestir a primeira cinta-liga, as feministas contrariaram o rótulo de mal-humoradas e produziram uma sentença tão perspicaz quanto irreverente. Diziam: "No princípio, as revistas femininas ensinavam às senhoras e senhoritas como preparar o melhor bolo para maridos e namorados. Agora, ensinam que as próprias damas devem ser o bolo".
A televisão, certamente, não assistiu inerte à metamorfose. Por um lado, exerceu forte influência na emancipação das mulheres. Transmitiu incontáveis novelas, minisséries, filmes e telejornais que contribuíram para propagar a imagem da fêmea moderna -Amélia às avessas, sem medo do sexo ou do mercado de trabalho, que troca o tédio dos lares pelo rodamoinho do mundo.
Por outro lado, como uma espécie de efeito colateral, a TV também se empenhou em colocar fermento (ou silicone) na mulher-bolo. Pariu, então, fornadas de feiticeiras, popozudas, mallandrinhas e carlas perez.
Caprichou tanto na receita que as mulheres-bolo se converteram em heroínas. São unanimidade nacional e se sentem perfeitamente bem no papel de objetos. Não carregam culpas nem pudores. Sabem que, se cumprirem à risca o script da passividade, estarão, paradoxalmente, se tornando ativas, ainda que por tempo limitado. O marmanjo da poltrona quer que rebolem? Elas rebolam. Quer meia-arrastão? Tome meia-arrastão. Mas cobram alto pelo show. Dão as cartas. Comandam o jogo, afinal.
Andava perdido em tais divagações quando me chegou às mãos o telefone da longínqua Rosa Maria. Trata-se da primeira garota-propaganda de que se tem notícia na televisão do país, como aponta o recém-lançado "Almanaque da TV" (editora Objetiva). Estreou, solitária, em 1950. Morena de cabelos levemente ondulados, olhos puxando para o verde, seios fartos, cintura fina, surgia todas as noites na Tupi. Promovia, ao vivo, os artigos da Marcel Modas, loja paulistana de roupas femininas.
Graciosa, segurava diante das câmeras uma saia, um short, uma blusinha. Enumerava as qualidades de cada mercadoria e, após anunciar os preços, perguntava, invariavelmente: "Não é mesmo uma tentação?". Daí o quadro chamar-se "A Tentação do Dia".
O título, claro, brincava com o duplo sentido. Quem era a tentação? O vestido xadrez da Marcel Modas ou a jovem Rosa Maria? Que produto, de fato, a Tupi estava vendendo? Na garota-propaganda, portanto, já se encontrava o embrião da mulher-bolo. Rosa Maria não bamboleava em cena, não oferecia as pernas à platéia, não segurava o tchan. No máximo, exibia os ombros nus e lançava para os telespectadores um olhar que ora lembrava o das normalistas, ora o das vamps. O mais importante, porém, é que a moça ocupava o vídeo principalmente por ser bonita -e moça.
Hoje, Rosa Maria mora em um apartamento nos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Não revela a idade e resiste um pouco a resgatar histórias do passado. Deixou a televisão em 1960, depois de também trabalhar na Record. Casou com um psicanalista, teve apenas um filho e viveu os últimos 40 anos como dona-de-casa. Estuda inglês, pratica natação e participa de uma ONG que leciona informática para crianças carentes.
Assusta-se quando explico que talvez ela seja a avó da Tiazinha, o embrião da mulher-bolo. Não sabe se concorda com a estranha tese.
Põe-se a falar: "Não havia maldade no que fazíamos, entende? Éramos muito inocentes, umas bobonas. Cheguei à Tupi meio sem querer, numa época em que ninguém possuía TV. Eu mesma nunca me aproximara de um aparelho. Uma amiga me convidou para o teste na emissora, mas não deu mais detalhes. Aceitei porque adorava a idéia de me sustentar sozinha. Não pensava em fama nem compreendia direito como a coisa funcionava. Não imaginava, por exemplo, que iria aparecer na sala dos outros".
Apareceu, seduziu a audiência e virou estrela. Distribuía autógrafos, tirava fotos com os fãs, recebia um sem-número de convites. Grã-finos a chamavam para festas ("gostavam de dizer: "a tentação do dia esteve lá em casa'"). Um banqueiro lhe abriu uma conta corrente ("depositou uma quantia e, em troca, me pediu: "vá sempre à agência; atrai clientes'"). Um empreiteiro quis lhe vender um apartamento no litoral pela metade do preço ("ele insistia: "se você comprar, o negócio valoriza'").
O dinheiro -"nada excepcional"- que ganhou como garota-propaganda, Rosa Maria gastou logo, boa parte com roupas. Certa vez, de férias em Poços de Caldas (MG), conheceu uma "mãe de família", que indagou: "Espremendo bem, menina, o que você faz na televisão? Por que alcançou tanto sucesso se nem atriz você é?"
A pergunta não lhe saiu mais da cabeça. Passaram-se alguns anos e, num gesto que classifica de "repentino", decidiu abandonar tudo. "Entrei em crise. Temi que o público ficasse dono de mim." Sem avisar ninguém, interrompeu as tarefas na Record, partiu e não voltou. "Quatro décadas depois, você telefona e me informa que sou a avó da Tiazinha. Tem cabimento?"


E-mail: aluis@folhasp.com.br


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