São Paulo, Domingo, 03 de Outubro de 1999
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CRÍTICA

O ajuste liberal da TV Cultura

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Como aquele a que foi submetido o país, com os resultados desastrosos ora à vista de quem quiser ver, este também chega atrasado -e vem maquiado pelo verniz vistoso da modernização. Está-se falando do ajuste liberal em curso na TV Cultura. Exagero? Com a palavra o presidente da Fundação Padre Anchieta, Jorge da Cunha Lima: "Chega de fazer a apologia do traço. Se um programa não der audiência durante seis meses, nós vamos tirá-lo do ar. Não tem sentido desperdiçar o dinheiro do contribuinte com programas que ninguém vê".
Essa é a súmula do ajuste. Foi repetida, com pequenas variações retóricas, pelo responsável pela TV Cultura em entrevistas recentes à imprensa e repisada durante sua participação no Maximídia (o maior encontro dos veículos de comunicação do país), há duas semanas. Há muito o que dizer sobre essa declaração de princípio.
Nem é o caso de levar a sério a meta estipulada pela emissora de alcançar quatro pontos de audiência em cada um de seus programas. Posta em prática, hoje ela significaria banir a TV Cultura do ar (basta ver o quadro do Ibope ao lado). Mais importante do que os devaneios numéricos, é discutir o mérito do problema.
Em primeiro lugar: quando Cunha Lima ameaça tirar do ar os programas-traço, não é à opinião pública, e nem mesmo ao contribuinte (essa versão liberal do cidadão), que se dirige, mas à "sociedade publicitária", com a qual resolveu agora se aliar. A expressão, uma pérola de concisão para se entender o que está em jogo, é dele, Cunha Lima, e foi lançada no Maximídia, diante de uma platéia formada por publicitários e profissionais de marketing. Não toleraremos programas sem audiência quer dizer: anunciem aqui, pois o retorno será garantido, mesmo que seja na marra.
Já que estamos falando de ajuste, o recado lembra muito aqueles pronunciamentos que o presidente e o seu ministro-chefe, Malan, fazem para "acalmar os mercados", a pretexto de prestarem contas à opinião pública em momentos de apuros. O paralelo é irresistível: a "sociedade publicitária" de Cunha Lima lembra o "capital externo" de que depende FHC; os quatro pontos de audiência, por sua vez, são as metas firmadas com o FMI, aos quais a emissora ou o país ficam doravante subordinados e prestam suas contas.
Há mais, no entanto. Vamos à segunda parte da súmula do ajuste liberal ("não tem sentido desperdiçar o dinheiro do contribuinte com programas que ninguém vê"). Eu diria, pelo contrário, que tem todo o sentido. E aqui o paralelo com a universidade pública talvez ajude a entender do que exatamente se está falando.
Foram necessárias décadas de investimento social (leia-se: do Estado) no sistema público de pesquisa e de ensino superior para que se conseguissem descobertas importantes, por exemplo, no combate às doenças tropicais ou no estímulo à agricultura. Muito dinheiro público foi "desperdiçado" durante décadas a fio em nome de uma aposta coletiva, civilizacional, de formação do país. Essa é uma tarefa que não pode ser substituída pela universidade privada, cuja lógica é a do lucro e a do retorno de curto prazo.
Assim como não cabe à universidade pública pautar-se pela lógica estrita do mercado, não tem nenhum cabimento pretender que a TV Cultura se paute pela audiência, mesmo que seja seletiva e blablablá, como diz Cunha Lima. Ocorre que, como a universidade pública sob FHC, a TV Cultura sob Cunha Lima parece passar por uma espécie de "privatização branca". Que uma e outra precisem reformular suas formas de financiamento é sabido, mas isso não pode significar que o preço a pagar seja a sua subordinação às leis do mercado ou à "sociedade publicitária". Por que não iniciar essa discussão abrindo à sociedade (civil) a caixa-preta das despesas e receitas?
No momento em que a TV dita comercial (um pleonasmo nas circunstâncias atuais), sem exceções, dá mostras do que é capaz de fazer com a inteligência, a dignidade e o amor-próprio do espectador para abocanhar migalhas de audiência, esperava-se da emissora pública que, acuada por todos os lados, fosse, sim, uma trincheira intransponível da cultura do traço. No fundo, pouco deveria importar se um programa da TV Cultura dá dois, 20, 57 ou menos sete pontos de audiência. O termômetro dessa emissora que se quer pública não poderia ser esse.
Mas não. A TV Cultura é hoje uma obra em regresso, dá sua cota de contribuição ao estrangulamento dos espaços públicos, poucos, ainda disponíveis no país.
A atual direção da emissora não criou nada de novo; o prestígio da TV Cultura se deve exclusivamente a feitos de gestões anteriores. Que se pense no "Roda Viva" e nos programas infantis. Resolveram agora tirar do ar o "60 Minutos", telejornal do meio-dia, e não puseram nada no lugar. Há, é verdade, o "Conversa Afiada", programa de Paulo Henrique Amorim, profissional sério e competentíssimo, mas ainda é cedo para saber até onde irá sua independência. Seria bom se tivesse estreado no "janeiro negro". Não é bom sinal, de qualquer forma, que seu programa seja apenas sobre economia e negócios, sem noticiário ou análise política.
É irônico, enfim, que a Cultura, no momento do ajuste, tenha escolhido o slogan "um jeito diferente de ver e fazer TV" para comemorar seus 30 anos. O slogan pode se transformar apenas nisso -um slogan, sem substância.
O liberalismo com plumas dos tucanos às vezes confunde os incautos. Demoramos a perceber que FHC, o professor universitário, o social-democrata, estava levando a cabo a maior viravolta liberal de que tem notícia esse país. Hoje o presidente é refém de seu feitiço. Jogou na lama, ou nos braços de ACM, seu passado progressista, por ambíguo que seja.
Cunha Lima é figura menos proeminente dessa mesma escola. Talvez demoremos a perceber o que ele queria de fato dizer quando, flertando com Ratinho, a seu lado no Maximídia, convidou a "sociedade publicitária" a participar da neo-Cultura.


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