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CRÍTICA
O ajuste liberal da TV Cultura
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV
Como aquele a que foi submetido o país, com os resultados desastrosos ora à vista de quem quiser ver, este também chega atrasado -e vem maquiado pelo verniz
vistoso da modernização. Está-se
falando do ajuste liberal em curso
na TV Cultura. Exagero? Com a
palavra o presidente da Fundação
Padre Anchieta, Jorge da Cunha
Lima: "Chega de fazer a apologia
do traço. Se um programa não der
audiência durante seis meses, nós
vamos tirá-lo do ar. Não tem sentido desperdiçar o dinheiro do
contribuinte com programas que
ninguém vê".
Essa é a súmula do ajuste. Foi
repetida, com pequenas variações
retóricas, pelo responsável pela
TV Cultura em entrevistas recentes à imprensa e repisada durante
sua participação no Maximídia (o
maior encontro dos veículos de
comunicação do país), há duas semanas. Há muito o que dizer sobre essa declaração de princípio.
Nem é o caso de levar a sério a
meta estipulada pela emissora de
alcançar quatro pontos de audiência em cada um de seus programas. Posta em prática, hoje ela
significaria banir a TV Cultura do
ar (basta ver o quadro do Ibope ao
lado). Mais importante do que os
devaneios numéricos, é discutir o
mérito do problema.
Em primeiro lugar: quando Cunha Lima ameaça tirar do ar os
programas-traço, não é à opinião
pública, e nem mesmo ao contribuinte (essa versão liberal do cidadão), que se dirige, mas à "sociedade publicitária", com a qual
resolveu agora se aliar. A expressão, uma pérola de concisão para
se entender o que está em jogo, é
dele, Cunha Lima, e foi lançada
no Maximídia, diante de uma platéia formada por publicitários e
profissionais de marketing. Não
toleraremos programas sem audiência quer dizer: anunciem
aqui, pois o retorno será garantido, mesmo que seja na marra.
Já que estamos falando de ajuste, o recado lembra muito aqueles
pronunciamentos que o presidente e o seu ministro-chefe, Malan, fazem para "acalmar os mercados", a pretexto de prestarem
contas à opinião pública em momentos de apuros. O paralelo é irresistível: a "sociedade publicitária" de Cunha Lima lembra o "capital externo" de que depende
FHC; os quatro pontos de audiência, por sua vez, são as metas firmadas com o FMI, aos quais a
emissora ou o país ficam doravante subordinados e prestam
suas contas.
Há mais, no entanto. Vamos à
segunda parte da súmula do ajuste liberal ("não tem sentido desperdiçar o dinheiro do contribuinte com programas que ninguém vê"). Eu diria, pelo contrário, que tem todo o sentido. E aqui
o paralelo com a universidade pública talvez ajude a entender do
que exatamente se está falando.
Foram necessárias décadas de
investimento social (leia-se: do
Estado) no sistema público de
pesquisa e de ensino superior para que se conseguissem descobertas importantes, por exemplo, no
combate às doenças tropicais ou
no estímulo à agricultura. Muito
dinheiro público foi "desperdiçado" durante décadas a fio em nome de uma aposta coletiva, civilizacional, de formação do país. Essa é uma tarefa que não pode ser
substituída pela universidade privada, cuja lógica é a do lucro e a
do retorno de curto prazo.
Assim como não cabe à universidade pública pautar-se pela lógica estrita do mercado, não tem
nenhum cabimento pretender
que a TV Cultura se paute pela audiência, mesmo que seja seletiva e
blablablá, como diz Cunha Lima.
Ocorre que, como a universidade
pública sob FHC, a TV Cultura
sob Cunha Lima parece passar
por uma espécie de "privatização
branca". Que uma e outra precisem reformular suas formas de financiamento é sabido, mas isso
não pode significar que o preço a
pagar seja a sua subordinação às
leis do mercado ou à "sociedade
publicitária". Por que não iniciar
essa discussão abrindo à sociedade (civil) a caixa-preta das despesas e receitas?
No momento em que a TV dita
comercial (um pleonasmo nas
circunstâncias atuais), sem exceções, dá mostras do que é capaz
de fazer com a inteligência, a dignidade e o amor-próprio do espectador para abocanhar migalhas de audiência, esperava-se da
emissora pública que, acuada por
todos os lados, fosse, sim, uma
trincheira intransponível da cultura do traço. No fundo, pouco
deveria importar se um programa
da TV Cultura dá dois, 20, 57 ou
menos sete pontos de audiência.
O termômetro dessa emissora
que se quer pública não poderia
ser esse.
Mas não. A TV Cultura é hoje
uma obra em regresso, dá sua cota de contribuição ao estrangulamento dos espaços públicos, poucos, ainda disponíveis no país.
A atual direção da emissora não
criou nada de novo; o prestígio da
TV Cultura se deve exclusivamente a feitos de gestões anteriores. Que se pense no "Roda Viva"
e nos programas infantis. Resolveram agora tirar do ar o "60 Minutos", telejornal do meio-dia, e
não puseram nada no lugar. Há, é
verdade, o "Conversa Afiada",
programa de Paulo Henrique
Amorim, profissional sério e
competentíssimo, mas ainda é cedo para saber até onde irá sua independência. Seria bom se tivesse
estreado no "janeiro negro". Não
é bom sinal, de qualquer forma,
que seu programa seja apenas sobre economia e negócios, sem noticiário ou análise política.
É irônico, enfim, que a Cultura,
no momento do ajuste, tenha escolhido o slogan "um jeito diferente de ver e fazer TV" para comemorar seus 30 anos. O slogan
pode se transformar apenas nisso
-um slogan, sem substância.
O liberalismo com plumas dos
tucanos às vezes confunde os incautos. Demoramos a perceber
que FHC, o professor universitário, o social-democrata, estava levando a cabo a maior viravolta liberal de que tem notícia esse país.
Hoje o presidente é refém de seu
feitiço. Jogou na lama, ou nos braços de ACM, seu passado progressista, por ambíguo que seja.
Cunha Lima é figura menos
proeminente dessa mesma escola. Talvez demoremos a perceber
o que ele queria de fato dizer
quando, flertando com Ratinho, a
seu lado no Maximídia, convidou
a "sociedade publicitária" a participar da neo-Cultura.
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