São Paulo, domingo, 04 de março de 2001

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CRÍTICA

"Reality show" banaliza o amor

ESTHER HAMBURGER

Uma das perversidades da cultura contemporânea é a banalização do amor. Transformada em bem supremo, entendida de maneira individualista, sem muito espaço para o compartilhar de emoções complexas, quase que reduzida ao gozo, a realização amorosa se transforma em um ideal que justifica a instabilidade dos envolvimentos, encoraja e direciona o consumo e empobrece a convivência.
Procurada à exaustão, a felicidade amorosa fica cada vez mais difícil. Os envolvimentos genuínos são raros. E o excesso de mediações dificulta o desenvolvimento das fagulhas de interação verdadeira, que de vez em quando rompem a monotonia dos encontros formais, para os quais basta pouco ou nada mais que o piloto automático. A fórmula dos "reality shows" capta e expressa, de maneira perversa, essa fascinação contraditória pelo amor que satura a mídia contemporânea e trunca os relacionamentos.
Na semana que passou, Fox estreou "Temptation Island", e, esta semana, Multishow leva ao ar "Survivor". Os dois programas são "reality shows" de sucesso no exterior. Talvez os dias de glória do gênero tenham passado. Mas infelizmente o formato de produção barata resiste e persiste. Apesar dos relativos baixos índices de audiência alcançados pela segunda versão de "No Limite", as emissoras continuam a promover um gênero inócuo, para não dizer perverso, de programação.
"Reality shows" estimulam a vaidade no sentido mais mesquinho do termo, reforçam a ilusão de que participar do espetáculo, qualquer que seja ele, seria via privilegiada de ascensão, como se os donos dos rostos que aparecem exaustivamente na mídia detivessem "realmente" algum poder. Baseados na exploração perversa da fofoca, na exposição de seres humanos a situações frequentemente ridículas, na melodramatização de histórias amorosas privadas, "reality shows" estimulam a busca pela interpretação excessiva e reduzem os participantes voluntários à posição de ratos de laboratório.
Vale ainda observar que, ao virar enlatado, exibido em outra língua, em outros tempos e territórios, o "reality show" provavelmente perde muito de seu apelo jornalístico e rompe o pacto de cumplicidade público/protagonistas que baseia a legitimidade da fórmula.
No início dos anos 90, os franceses, chocados com o sucesso de público gerado por versões locais do gênero, teorizaram sobre as redefinições dos limites entre o espaço público e privado, nas quais a dramatização de situações íntimas, em cadeia nacional, implica. No berço do iluminismo, o declínio do homem público, para aludir ao livro de Richard Sennett, choca. E pensadores como Pierre Chambat e Alain Ehrenberg, editores de um volume da revista "Esprit", dedicado ao assunto, colocaram o dedo na ferida.
A partir de suas observações é possível pensar o "reality show" como formato que envolve algum tipo de participação de cidadãos, até então reduzidos à posição de telespectadores, em espetáculos que podem pedir desafios do tipo gincana ou dramatizações de suas próprias intimidades.
Elementos de "reality shows" estão presentes em programas de auditório, telejornais e teleficção. É como se a narrativa melodramática saísse das páginas dos romances, dos palcos do teatro, das telas de cinema, para alinhavar nossos pequenos dramas cotidianos, tornando-os matéria-prima, pronta para ser exibida e compartilhada, com aquele frescor da notícia quente e convincentemente autêntica, transmitida ao vivo, gravada em loco, ou no mínimo, representada pelos próprios protagonistas.
Não é difícil imaginar que seja possível gerar formas alternativas de representação, que incorporem a participação, promovam a interação substantiva entre pessoas, propiciem a sensação de estender o alcance de nossos sentidos no tempo e no espaço, oferecendo uma janela privilegiada para o mundo, capaz de enriquecer repertórios compartilhados.
Os produtos culturais mais sofisticados, em qualquer meio, são aqueles que conseguem aliar sucesso de público e de crítica. Exemplares raros, frutos de ousadias criativas, são em geral trabalhos de artistas que conseguem transcender o lugar comum, produzindo obras que estimulam a sensibilidade, permitem o crescimento, promovem a expansão da alma. E assim tocam no que é essencial.
O formato "reality show" produziu as coisas mais asquerosas que a televisão já exibiu. Situado no limiar entre o virtual e o presencial, o gênero promove uma interpenetração promíscua. É assustador constatar que, em nome da primazia do gosto popular -proclamado aqui em vão, e de maneira pejorativa-, o registro maniqueísta típico do melodrama, contamina a vida cotidiana e rege as relações entre pessoas, condenadas a representar relações baseadas em scripts recheados de intrigas e mal entendidos e carentes da magia dos encontros de verdade.

E-mail: ehamb@uol.com.br


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