São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

O ramerrão econômico da Globo News

Fernando De Barros e Silva

A DESPEITO de ter se transformado muito mais num canal de programas de entrevistas e debates do que numa CNN brasileira, como pretendia no início, o maior feito recente da Globo News foi ter revelado em primeira mão a queda de Andrea Calabi do BNDES. Anunciado no "Jornal das Dez", o carro-chefe da emissora, o "furo", com o se diz em jargão jornalístico, colocou as redações em polvorosa. Todo mundo saiu correndo atrás do prejuízo. Ponto para a emissora. Furo é furo, pouco importa a sua proveniência, mesmo que a notícia tenha sido "vazada" pelo Palácio do Planalto, o primeiro interessado em fazê-la circular madrugada adentro. É sintomático, porém, que a Globo News tenha sido eleita pelo poder central para cumprir a tarefa. Vista por um ângulo menos óbvio, a notícia pode muito bem ser lida como mensagem oficiosa do Planalto, e o telejornal, como um porta-voz de plantão, fora do horário de serviço. Mas vamos por partes.
O "Jornal das Dez", apresentado por André Trigueiro, talvez seja hoje o melhor telejornal brasileiro. Suas qualidades porém são também os seus defeitos. O jornal é uma espécie de diário da corte, feito quase todo em torno de Brasília e para o público de Brasília e seus satélites -a elite política e empresarial do país. Fala da e para a Casa Grande, enquanto o "Jornal Nacional", das mesmas Organizações Globo, se dirige à Senzala, mais para ocupá-la e comovê-la antes da novela do que para informá-la, porque o desafio do "JN" é preservar sua audiência oceânica, e não informar a opinião pública, que aliás não existe no Brasil.
Qualidades que são defeitos e vice-versa, o que significa isso? No caso da Globo News, significa que a emissora se permite um grau de pluralismo e de controvérsia no trato da política que, por limitado e precário que ainda seja, é até hoje impensável no caso da Globo. Essa, por assim dizer, democracia eletrônica controlada na emissora paga, antes de ser um avanço em si mesma, atua como contrapeso e disfarce para a ausência quase total de debate efetivo na esfera econômica, que é hoje o que interessa. É como se a política tivesse se transformado num apêndice do colunismo social -aliás, se transformou mesmo-, numa espécie de diversão para a elite que se alimenta de suas próprias intrigas, sem maiores consequências para ninguém.
O liberalismo político, antes portanto de ser um valor, funciona como verniz para a ditadura mal-disfarçada do noticiário econômico, cuja tônica é pautada pela cartilha da modernização conservadora de FHC, com suas variantes. Que se repare no flagrante descompasso entre a desenvoltura das análises políticas da Globo News, muitas vezes progressistas e, em alguns casos, tingidas até de certa tonalidade esquerdista ou esquerdizante, e o ramerrame econômico, onde -está implícito- não há exatamente o que discutir, mas apenas o que repetir, numa eterna ladainha. Tome-se como exemplo o programa "Espaço Aberto", apresentado por Míriam Leitão. Na última quarta-feira, entrevistava o neopoderoso Alcides Tápias, ministro do Desenvolvimento. A conversa segue seu ritmo fastidioso, e faz lembrar o extinto "Crítica & Autocrítica", paradigma do tédio tecnoburocrático. Tápias enfim responde à ultima pergunta e a apresentadora emenda: "Quem sabe teremos agora uma política industrial moderna, sem os vícios de antigamente. Vai ser um grande passo. Estamos torcendo". Há na frase um consenso tácito, uma ideologia de que a apresentadora é porta-voz por assim dizer "natural". Nem seria preciso confessar sua torcida para sabermos que essa camisa ela já vestiu há muito.
Esse é o lado sério do jornalismo econômico da Globo News. Ao lado dele, e complementando-o, há a sua vertente anedótica, involuntariamente anedótica, é claro. No programa "Conta Corrente", apresentado por Tamara Leftel, o noticiário é tratado pelo viés dos negócios. Coerente, o programa se aproveita do fato de o Estado brasileiro ter sido de fato reduzido a isso -viabiliza vários negócios, inviabiliza outros e, de quebra, por pressão do PFL de ACM (ironia fina), usa os trocados que o ministro Pedro Malan não trancou no cofre do ajuste fiscal para negociar um pouco mais de sopão à ralé (leia-se o fundo para a erradicação da pobreza). Pois bem, nesse "Conta Corrente" há um "analista" que é apresentado como "antropólogo empresarial". Seu quadro consiste em dar sugestões "antropológicas" de boa gerência empresarial. Ali vale tudo, desde os jargões a respeito da reengenharia e da busca de competitividade no "mundo globalizado" até dicas prosaicas, do tipo não sirva café requentado para o cliente, ele é mais importante do que o presidente da empresa. É a vertente monetária da auto-ajuda, não há dúvida, mas é antes um sintoma de selvageria, em que regras básicas de civilidade entram de contrabando num pacote de conselhos de polichinelo destinados a maximizar o lucro de trogloditas globalizados e enfim livres do fardo de ter algum compromisso com essa obra em regresso, o Brasil.


E-mail: fbsi@uol.com.br



Texto Anterior: Astrologia - Oscar Quiroga: A expiação orgiástica dos pecados
Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.