São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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Quem ri de quem em "Sai de Baixo"?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

"Do povo eu só quero duas coisas: voto e distância."
(Bordão do político Justo Veríssimo, personagem de Chico Anysio")

"Eu tenho horror a pobre."
(Bordão do Caco Antibes, de Miguel Falabella, em "Sai de Baixo")

Caco Antibes e Justo Veríssimo são primos na galeria de personagens do humor brasileiro. Ambos têm ojeriza aos pobres, mas é só. No mais são primos distantes. O tipo de Chico Anysio é uma caricatura de um certo perfil de político brasileiro. Quando manifesta sua repulsa pela gentalha, está por assim dizer incriminando a si mesmo. Rimos, é verdade, do que ele diz, mas rimos sobretudo do que ele próprio tem de abjeto e de inaceitável. Trata-se, em suma, de um pulha flagrado na intimidade.
Com Caco Antibes é diferente. A sua graça reside menos no que ele representa socialmente e muito mais no que ele diz. Ou, para dizer de outra forma, quem é grotesco e abjeto não é o personagem, mas os pobres de quem ele escarnece. Eis aí um primeiro detalhe para se entender o tipo de humor praticado pelo programa "Sai de Baixo".
Dizer que o sucesso popular desse dominical da Globo deriva da sua capacidade de explorar preconceitos é certo, mas também é óbvio. Importa ver como, exatamente, isso se dá?
O recurso humorístico de "Sai de Baixo" é basicamente o que em jargão teatral se chama de "caco". Segundo o Aurélio, o caco é a "palavra ou frase que o ator, geralmente de improviso, introduz em qualquer de suas falas para substituir outra do texto original e/ou provocar efeito cômico".
"Sai de Baixo" é uma sucessão de cacos. O recurso como que encobre todo o resto -o enredo, sempre absurdo e colegial, o andamento da história, irrelevante, e os próprios personagens. Estes, em princípio, foram pensados para funcionar como peças de uma família decadente. Com o passar do tempo, essa crônica caricatural de costumes foi sumindo da tela. E foi sumindo à medida que Falabella passou a ocupar o centro de gravidade do programa, até reduzir os demais atores, não obstante seus talentos específicos, a coadjuvantes, quando não a simples escadas para os grandes solos de Narciso do loiro de sangue azul, cuja diversão predileta é manifestar sua alergia crônica pela ralé.
No último domingo, quando o programa foi ao ar ao vivo, abrindo a nova programação da Globo, cacos e preconceitos foram potencializados. Os atores deslumbravam-se com a própria capacidade de improvisar e Caco Antibes se deliciava com a descrição daquelas imagens do inferno -a patuléia se empanturrando com pernil gordo, muita farofa e um exército de cajuzinhos em festas kitsch.
Mas qual é a relação entre a improvisação e o conteúdo preconceituoso. Sem pretender abusar da paciência do leitor, Freud explica.
A lógica do caco está muito próxima da lógica do chiste -a frase de espírito que o inventor da psicanálise estudou tão bem no livro "O Chiste e sua Relação como Inconsciente" (1905). A frase de espírito, escreve Freud, "permite a satisfação de um impulso, obsceno ou hostil, apesar da existência de um obstáculo que lhe barra o caminho". Ou, como disse o psicanalista Renato Mezan comentando essa passagem, "a frase de espírito é um modo socialmente aceitável de criticar ou ofender outrem, e a razão dessa tolerância reside justamente no modo disfarçado com que a injúria é lançada". Em termos proverbiais, é isso o que significa a frase "toda piada tem um fundo de verdade".
É curiosa a aceitação do programa e o fato de que, aparentemente, não ofenda ninguém. A Globo tem a capacidade de divertir um país inteiro -e no domingo à noite, o horário mais depressivo da semana- jogando-lhe na cara as suas piores iniquidades. Isso deve ter muito a ver com uma cultura que desde sempre criou válvulas de escape, compensações simbólicas, mecanismos de amaciamento para lidar com a sua violência.
Sintoma disso é que a miséria só pinte na tela da Globo devidamente esterilizada e remediada, caso das novelas, ou na forma do escracho, exemplo de "Sai de Baixo". Trata-se, definitivamente, de um verdadeiro caso de amor com o Brasil.

É sabido que Miguel Falabella tem por seus críticos o mesmo desprezo que Caco Antibes tem pelos pobres; não há dúvida de que o contrário seria pior.



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