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CRÍTICA
A bola, a bunda e a redenção dos pobres
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV
Que imagem as novelas da Globo fazem dos pobres? A resposta
não é simples e varia conforme o
caso, mas se pode dizer de saída e
sem muito medo de errar que a
pobreza nas novelas é invariavelmente edulcorada. O trânsito entre os núcleos "ricos" e "pobres",
sempre pela via de tórridos casos
de amor, é uma ferramenta recorrente da teledramaturgia global.
A paixão entre a mocinha pobre
da periferia e o ricaço da zona sul,
ou vice-versa, sugere uma mobilidade social que a vida do lado de
cá da tela obviamente desmente.
Quem não se lembra de Antônio Fagundes e Patrícia Pillar, o
latifundiário e a sem-terra, unidos
em "O Rei do Gado" pelos laços
da paixão? Pares assim, frequentes na ficção global, encobrem de
ideologia romântica a brutalidade
da desigualdade brasileira.
De passagem: descontadas as
devidas diferenças, algo semelhante está presente tanto num livro clássico da sociologia brasileira como "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, como disperso pela obra de Jorge Amado.
Em ambos, há uma sexualização
das relações sociais, uma espécie
de "tempero forte" brasileiro que
"humaniza" o abismo social do
país, isso quando não o torna
uma grande fonte de prazer.
Voltando às novelas da Globo e
à pergunta inicial. Há tempos não
se via uma representação do povo
e da pobreza tão sintomaticamente brasileira quanto a que foi ao ar
na terça-feira da semana retrasada, concentrada em um único capítulo de "Suave Veneno".
Resumo para quem não viu: a
primeira metade do capítulo se
passa no Maracanã, onde Renildo
(Rodrigo Faro), filho de zelador
que vira craque do Flamengo, vai
viver o dia de sua consagração numa decisão contra o River Plate (a
escolha do time argentino colabora para construir o efeito de que
"Renildo é Brasil"). Quando vem
o gol de Renildo, sua namorada,
Marina (Deborah Secco), diz, em
meio à comemoração: "A gente
vai ficar rico, vai para a Europa,
vai ganhar muito dinheiro".
A outra metade do capítulo se
passa no auditório do "Domingão
do Faustão", onde a empregada
doméstica Eliete (Nívea Stellmann) participa da final do concurso Garota Bumbum Dourado.
Aqui vale a pena reproduzir parte
dos diálogos da novela entre o
apresentador e a personagem:
"Atenção galera, é hora de decisão, a final do concurso Garota
Bumbum Dourado. Você sabe
que nesse país muita gente vai pra
frente através do bumbum", diz
Faustão, ator de si mesmo.
- O que você fez para ter esse
bumbum maravilhoso? Qual é o
seu segredo?
- Eu trabalho muito né, Faustão. Eu era empregada doméstica,
agora pedi demissão do meu emprego e tenho certeza de que Nossa Senhora de Aparecida vai me
ajudar, e vou ganhar esse concurso, responde a atriz.
"Aqui no "Domingão" você confere os bumbuns de Elisamara e
Eliete. Confira aí a chamada preferência nacional", diz Faustão.
Depois das apresentações, chega, então, a hora do resultado:
- Você vai saber agora, nesses
tempos de economia instável,
quem aplicou melhor nos fundos,
Elisamara ou Eliete.
Eliete vence, é claro.
- O que se passa na cabeça da
garota que tem o traseiro mais bonito do Brasil?
- É muito emocionante estar
aqui com você, Faustão, diante
desse auditório maravilhoso. Eu
estou muito feliz. Acho que agora
vou poder tirar o pé da lama. Eu
gostaria de dedicar esse prêmio
ao meu noivo Claudionor.
- Dá uma voltinha então...
Eliete dá a voltinha e completa:
- Queria dedicar também essa
vitória a todas as domésticas do
Brasil. Porque a vida pode ser difícil, o dinheiro pode ser curto... Se
a sua patroa não gosta do que você faz, se ela te maltrata, o importante é que cada doméstica tem
que ter um grande sonho e lutar
por ele, como eu lutei. Você vai
conseguir. Doméstica com muito
orgulho, sim!
Eliete prossegue: "Meu noivo
entrou em coma por causa de
uma violência gratuita, sem motivo nenhum. Gente, vamos parar
com essa violência e voltar a ser o
país do samba e da alegria."
Aqui termina o show global. O
que pensar dessas sequências
inesquecíveis? Grita, em primeiro
lugar, a naturalidade com que o
apresentador empilha cafajestadas e a sem-cerimônia com que
vende as mulheres (atenção, escoteiros da cruzada pela qualidade
na TV: há diferença entre isso e a
vagina que fuma no Ratinho?).
Chama atenção, em segundo lugar, o misto de orgulho e preconceito em relação aos pobres. Há
orgulho em ser pobre, em "vir de
baixo", em ser um pé rapado ou
uma doméstica, mas desde que (e
apenas desde que) você tenha deixado de sê-lo, isto é, desde que você tenha "vencido na vida" mostrando a bunda ou jogando bola.
Os mitos do "povo sensual" e da
"ginga brasileira" são mercantilizados e funcionam como veículos
de ascensão social, como redentores da miséria. Há, também aqui,
uma espécie de sexualização da
pobreza que a encobre ao mesmo
tempo que a enaltece e mistifica.
Se isso fizer algum sentido, a
"mensagem cívica" que a Globo
coloca de contrabando na fala final de Eliete tem um sentido bem
preciso. "Vamos parar com essa
violência e voltar a ser o país do
samba e da alegria" significa algo
como: "Esqueçamos a violência
da pobreza brasileira porque a
novela já tratou de resolvê-la em
samba e alegria, em bunda e futebol, em Sheilas e Ronaldinhos".
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