São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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CRÍTICA

A bola, a bunda e a redenção dos pobres

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Que imagem as novelas da Globo fazem dos pobres? A resposta não é simples e varia conforme o caso, mas se pode dizer de saída e sem muito medo de errar que a pobreza nas novelas é invariavelmente edulcorada. O trânsito entre os núcleos "ricos" e "pobres", sempre pela via de tórridos casos de amor, é uma ferramenta recorrente da teledramaturgia global.
A paixão entre a mocinha pobre da periferia e o ricaço da zona sul, ou vice-versa, sugere uma mobilidade social que a vida do lado de cá da tela obviamente desmente.
Quem não se lembra de Antônio Fagundes e Patrícia Pillar, o latifundiário e a sem-terra, unidos em "O Rei do Gado" pelos laços da paixão? Pares assim, frequentes na ficção global, encobrem de ideologia romântica a brutalidade da desigualdade brasileira.
De passagem: descontadas as devidas diferenças, algo semelhante está presente tanto num livro clássico da sociologia brasileira como "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, como disperso pela obra de Jorge Amado. Em ambos, há uma sexualização das relações sociais, uma espécie de "tempero forte" brasileiro que "humaniza" o abismo social do país, isso quando não o torna uma grande fonte de prazer.
Voltando às novelas da Globo e à pergunta inicial. Há tempos não se via uma representação do povo e da pobreza tão sintomaticamente brasileira quanto a que foi ao ar na terça-feira da semana retrasada, concentrada em um único capítulo de "Suave Veneno".
Resumo para quem não viu: a primeira metade do capítulo se passa no Maracanã, onde Renildo (Rodrigo Faro), filho de zelador que vira craque do Flamengo, vai viver o dia de sua consagração numa decisão contra o River Plate (a escolha do time argentino colabora para construir o efeito de que "Renildo é Brasil"). Quando vem o gol de Renildo, sua namorada, Marina (Deborah Secco), diz, em meio à comemoração: "A gente vai ficar rico, vai para a Europa, vai ganhar muito dinheiro".
A outra metade do capítulo se passa no auditório do "Domingão do Faustão", onde a empregada doméstica Eliete (Nívea Stellmann) participa da final do concurso Garota Bumbum Dourado. Aqui vale a pena reproduzir parte dos diálogos da novela entre o apresentador e a personagem:
"Atenção galera, é hora de decisão, a final do concurso Garota Bumbum Dourado. Você sabe que nesse país muita gente vai pra frente através do bumbum", diz Faustão, ator de si mesmo.
- O que você fez para ter esse bumbum maravilhoso? Qual é o seu segredo?
- Eu trabalho muito né, Faustão. Eu era empregada doméstica, agora pedi demissão do meu emprego e tenho certeza de que Nossa Senhora de Aparecida vai me ajudar, e vou ganhar esse concurso, responde a atriz.
"Aqui no "Domingão" você confere os bumbuns de Elisamara e Eliete. Confira aí a chamada preferência nacional", diz Faustão.
Depois das apresentações, chega, então, a hora do resultado:
- Você vai saber agora, nesses tempos de economia instável, quem aplicou melhor nos fundos, Elisamara ou Eliete.
Eliete vence, é claro.
- O que se passa na cabeça da garota que tem o traseiro mais bonito do Brasil?
- É muito emocionante estar aqui com você, Faustão, diante desse auditório maravilhoso. Eu estou muito feliz. Acho que agora vou poder tirar o pé da lama. Eu gostaria de dedicar esse prêmio ao meu noivo Claudionor.
- Dá uma voltinha então...
Eliete dá a voltinha e completa:
- Queria dedicar também essa vitória a todas as domésticas do Brasil. Porque a vida pode ser difícil, o dinheiro pode ser curto... Se a sua patroa não gosta do que você faz, se ela te maltrata, o importante é que cada doméstica tem que ter um grande sonho e lutar por ele, como eu lutei. Você vai conseguir. Doméstica com muito orgulho, sim!
Eliete prossegue: "Meu noivo entrou em coma por causa de uma violência gratuita, sem motivo nenhum. Gente, vamos parar com essa violência e voltar a ser o país do samba e da alegria."
Aqui termina o show global. O que pensar dessas sequências inesquecíveis? Grita, em primeiro lugar, a naturalidade com que o apresentador empilha cafajestadas e a sem-cerimônia com que vende as mulheres (atenção, escoteiros da cruzada pela qualidade na TV: há diferença entre isso e a vagina que fuma no Ratinho?).
Chama atenção, em segundo lugar, o misto de orgulho e preconceito em relação aos pobres. Há orgulho em ser pobre, em "vir de baixo", em ser um pé rapado ou uma doméstica, mas desde que (e apenas desde que) você tenha deixado de sê-lo, isto é, desde que você tenha "vencido na vida" mostrando a bunda ou jogando bola.
Os mitos do "povo sensual" e da "ginga brasileira" são mercantilizados e funcionam como veículos de ascensão social, como redentores da miséria. Há, também aqui, uma espécie de sexualização da pobreza que a encobre ao mesmo tempo que a enaltece e mistifica.
Se isso fizer algum sentido, a "mensagem cívica" que a Globo coloca de contrabando na fala final de Eliete tem um sentido bem preciso. "Vamos parar com essa violência e voltar a ser o país do samba e da alegria" significa algo como: "Esqueçamos a violência da pobreza brasileira porque a novela já tratou de resolvê-la em samba e alegria, em bunda e futebol, em Sheilas e Ronaldinhos".


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