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CRÍTICA
Depósito de figurinos
Nelson de Sá
EU, no cotidiano da crítica aos pseudo-eventos da
política na TV, venho há uma década me balisando por algumas idéias definidas. Em e-mails,
alguns leitores têm pedido esclarecimentos, detalhes. Eles vão a seguir:
A obra mais esclarecedora da simbiose entre política e
TV, no último meio século, veio sintomaticamente de um
americano. Em "A Imagem", Daniel Boorstin registrou
quase como um desabafo a sua reação às performances
"espetaculares" de John Kennedy, na
campanha eleitoral de 60, e Joseph
McCarthy, na cobertura do macarthismo em meados dos anos 50.
Boorstin vislumbrou, nesses e em outros episódios, o surgimento de um novo
modelo de sociedade nos EUA, que viria
a se disseminar pelo globo. "A Imagem",
em 1961, identificou os "pseudo-eventos", fatos criados unicamente para a mídia, sobretudo a TV, e que passaram a
formar um mundo não necessariamente
falso, mas mimético, teatral -e que aos
poucos se sobrepôs ao real. Um mundo
gerado com fins específicos por publicitários, relações-públicas, jornalistas, em
suma, por dramaturgos.
A partir daí, o livro discorre sobre política, cinema, literatura, jornalismo, sem
deixar de fora o pseudo-evento que é a
própria crítica do pseudo-evento. Algumas passagens traduzidas da edição
americana de 87, já que não se conhece edição brasileira:
- A produção das ilusões que inundam a nossa experiência se tornou o negócio da América. Estou pensando
não só em publicidade ou retórica política, mas em todas
as atividades que acreditam nos informar e educar: empresas, editoras, artistas. Começamos a ficar confusos
quanto ao que é "original". Mais e mais os fatos se tornam
performances dramáticas em que se interpreta mais ou
menos bem um script já preparado.
- A nossa era criou um novo tipo de eminência, a celebridade. A celebridade é a pessoa que é conhecida por ser
bem conhecida. É o pseudo-evento humano. Ela é feita
por todos nós que queremos ler sobre ela, que gostamos
de vê-la na TV, que falamos sobre ela com nossos amigos.
Sua relação com a moralidade e até com a realidade é altamente ambígua.
- A política (com toda a parafernália de maquiagem,
ensaios, iluminação) adotou o "star system" que a domina mais a cada eleição. E qualquer um pode ser transformado numa estrela. Ele é escolhido menos por seu valor
intrínseco do que por sua capacidade de ser "construído".
Ele é um bom receptáculo para o que o público quer ver
nele? A imagem certa vai eleger um presidente ou vender
um automóvel, uma religião, um cigarro.
O livro, que na época foi acusado de antiamericanismo,
inspirou toda a literatura crítica posterior -de "A Sociedade do Espetáculo", que adota as suas formulações sem
dar crédito, a "Automatic Vaudeville" e o recém-lançado
"Vida, o Filme", que dão o crédito.
Mas isso tudo é passado, agora que a AOL (Internet) engoliu a Time Warner (TV etc.). A revolução visual, para
usar pela última vez uma expressão de Boorstin, sofreu
um novo salto com as corporações da world wide web, o
que levou ao aparecimento de uma nova crítica de mídia.
A babel consumada pela Internet
produziu profetas ingênuos, que
anunciam a democratização universal. Um seminário da Unesco, há dois
anos no Rio, reuniu muitos deles. Mas
trouxe pensadores mais realistas e
inovadores, como Gianni Vattimo, de
"Aventuras da Diferença".
Vattimo também rejeita o velho temor de uma sociedade homogeneizada pela "indústria cultural", mas não
cai na ingenuidade. Ele vislumbra um
palco de "comunicação babélica e global", que exige de cada um que o conheça e domine -como um "super-homem das massas", título de sua
conferência. Algumas passagens:
- O que podemos chamar de historicismo de massa (a consciência da relatividade histórica de todos os valores
e da ligação entre conhecimento e interesse) não é mais uma atitude restrita a poucos. Em outras palavras, agora todo mundo sabe
que a TV (e a mídia etc.) mente. Vivemos numa época em
que a verdade é que o mundo verdadeiro se tornou uma
fábula.
- O esforço de Nietzsche de imaginar seu super-homem foi inspirado pela idéia de que o homem tem que se
elevar até o nível das suas capacidades técnicas. Essas capacidades criaram, acima de tudo, o mundo da comunicação babélica que parece ameaçar a humanidade do indivíduo. O principal traço do super-homem é a capacidade de propor "valores" novos. O homem que, na era do
niilismo consumado, não é capaz de inventar representações pessoais, isto é, de ser um super-homem, está destinado a perecer como um indivíduo.
Vattimo destaca a imagem nietzschiana do homem que
se move "no jardim da história como num depósito de figurinos de teatro, livre para escolher um ou outro para
sua auto-representação". É o super-homem contemporâneo: o político em campanha, a celebridade na TV, o adolescente no chat. Para sobreviver, pois não tem mais para
onde fugir, o indivíduo se torna um ator que inventa interpretações de si mesmo. Mais e melhores eus.
O jornalista Fernando de Barros e Silva está em férias
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