São Paulo, #!L#Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Depósito de figurinos

Nelson de Sá

EU, no cotidiano da crítica aos pseudo-eventos da política na TV, venho há uma década me balisando por algumas idéias definidas. Em e-mails, alguns leitores têm pedido esclarecimentos, detalhes. Eles vão a seguir:

A obra mais esclarecedora da simbiose entre política e TV, no último meio século, veio sintomaticamente de um americano. Em "A Imagem", Daniel Boorstin registrou quase como um desabafo a sua reação às performances "espetaculares" de John Kennedy, na campanha eleitoral de 60, e Joseph McCarthy, na cobertura do macarthismo em meados dos anos 50.
Boorstin vislumbrou, nesses e em outros episódios, o surgimento de um novo modelo de sociedade nos EUA, que viria a se disseminar pelo globo. "A Imagem", em 1961, identificou os "pseudo-eventos", fatos criados unicamente para a mídia, sobretudo a TV, e que passaram a formar um mundo não necessariamente falso, mas mimético, teatral -e que aos poucos se sobrepôs ao real. Um mundo gerado com fins específicos por publicitários, relações-públicas, jornalistas, em suma, por dramaturgos.
A partir daí, o livro discorre sobre política, cinema, literatura, jornalismo, sem deixar de fora o pseudo-evento que é a própria crítica do pseudo-evento. Algumas passagens traduzidas da edição americana de 87, já que não se conhece edição brasileira:
- A produção das ilusões que inundam a nossa experiência se tornou o negócio da América. Estou pensando não só em publicidade ou retórica política, mas em todas as atividades que acreditam nos informar e educar: empresas, editoras, artistas. Começamos a ficar confusos quanto ao que é "original". Mais e mais os fatos se tornam performances dramáticas em que se interpreta mais ou menos bem um script já preparado.
- A nossa era criou um novo tipo de eminência, a celebridade. A celebridade é a pessoa que é conhecida por ser bem conhecida. É o pseudo-evento humano. Ela é feita por todos nós que queremos ler sobre ela, que gostamos de vê-la na TV, que falamos sobre ela com nossos amigos. Sua relação com a moralidade e até com a realidade é altamente ambígua.
- A política (com toda a parafernália de maquiagem, ensaios, iluminação) adotou o "star system" que a domina mais a cada eleição. E qualquer um pode ser transformado numa estrela. Ele é escolhido menos por seu valor intrínseco do que por sua capacidade de ser "construído". Ele é um bom receptáculo para o que o público quer ver nele? A imagem certa vai eleger um presidente ou vender um automóvel, uma religião, um cigarro.

O livro, que na época foi acusado de antiamericanismo, inspirou toda a literatura crítica posterior -de "A Sociedade do Espetáculo", que adota as suas formulações sem dar crédito, a "Automatic Vaudeville" e o recém-lançado "Vida, o Filme", que dão o crédito.
Mas isso tudo é passado, agora que a AOL (Internet) engoliu a Time Warner (TV etc.). A revolução visual, para usar pela última vez uma expressão de Boorstin, sofreu um novo salto com as corporações da world wide web, o que levou ao aparecimento de uma nova crítica de mídia.
A babel consumada pela Internet produziu profetas ingênuos, que anunciam a democratização universal. Um seminário da Unesco, há dois anos no Rio, reuniu muitos deles. Mas trouxe pensadores mais realistas e inovadores, como Gianni Vattimo, de "Aventuras da Diferença".
Vattimo também rejeita o velho temor de uma sociedade homogeneizada pela "indústria cultural", mas não cai na ingenuidade. Ele vislumbra um palco de "comunicação babélica e global", que exige de cada um que o conheça e domine -como um "super-homem das massas", título de sua conferência. Algumas passagens:
- O que podemos chamar de historicismo de massa (a consciência da relatividade histórica de todos os valores e da ligação entre conhecimento e interesse) não é mais uma atitude restrita a poucos. Em outras palavras, agora todo mundo sabe que a TV (e a mídia etc.) mente. Vivemos numa época em que a verdade é que o mundo verdadeiro se tornou uma fábula.
- O esforço de Nietzsche de imaginar seu super-homem foi inspirado pela idéia de que o homem tem que se elevar até o nível das suas capacidades técnicas. Essas capacidades criaram, acima de tudo, o mundo da comunicação babélica que parece ameaçar a humanidade do indivíduo. O principal traço do super-homem é a capacidade de propor "valores" novos. O homem que, na era do niilismo consumado, não é capaz de inventar representações pessoais, isto é, de ser um super-homem, está destinado a perecer como um indivíduo.

Vattimo destaca a imagem nietzschiana do homem que se move "no jardim da história como num depósito de figurinos de teatro, livre para escolher um ou outro para sua auto-representação". É o super-homem contemporâneo: o político em campanha, a celebridade na TV, o adolescente no chat. Para sobreviver, pois não tem mais para onde fugir, o indivíduo se torna um ator que inventa interpretações de si mesmo. Mais e melhores eus.


O jornalista Fernando de Barros e Silva está em férias


Texto Anterior: Astrologia - Oscar Quiroga: O conflito é o combustível para que a humanidade atinja a perfeição
Próximo Texto: Filmes de hoje
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.