São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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CRÍTICA

'Muvuca' domestica Casé

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Ninguém disputa a audiência com um lixo como "A Praça É Nossa" impunemente. E Regina Casé paga o preço por ter aceitado essa tarefa. O seu novo programa, "Muvuca", parece se enquadrar na nova estratégia da Globo, que tem sido de mesclar o popular com o popularesco, às vezes com resultados perversos, caso da entrevista com o "maníaco do parque" no "Fantástico", às vezes com resultados um tanto decepcionantes, caso do próprio "Muvuca".
Um programa que estréia entrevistando Angélica de certa forma sela seu destino e define seus propósitos. Não é ao público do extinto "Brasil Legal", do qual incorpora de forma acessória alguns elementos, que "Muvuca" se dirige. Saber de Angélica como e quando ela perdeu sua virgindade pode ser interessante para o leitor de "Caras". Não seria preciso queimar um talento como o de Regina Casé para correr dessa maneira atrás dos pontos do Ibope. Cissa Guimarães faria o serviço -talvez até com maior desenvoltura.
É até estranho que esse programa tão mais conservador e menos inteligente que o "Brasil Legal" tenha provocado tanto entusiasmo na crítica. Na mixórdia que caracteriza esse "Muvuca", Casé parece ora estar apresentando o "Vídeo Show" e ora requentando em versão mais moderninha -mas não muito- o sofá de Hebe Camargo.
Foi domesticada pelo padrão Globo de qualidade na versão Marluce, que é mais ou menos como Medeiros no sindicalismo: uma mulher de resultados.
A crônica da vida brasileira que Casé fazia tão bem no programa anterior ficou em segundo plano, foi abafada pela profusão de convidados famosos e de seus segredos de polichinelo. A curiosidade pelo mundo do outro cedeu espaço para a fofoca do mundo dos mesmos. Há ecos constrangedores das "Intimidades" de Xuxa na "Muvuca" de Casé.
A impertinência e a sem-cerimônia da apresentadora perderam a função reveladora que tinham no "Brasil Legal". Quando escrevi neste espaço sobre esse ótimo programa, há pouco mais de um ano, disse, com alguma hesitação, que talvez houvesse lá um problema de fundo, a saber: um fascínio por formas de vida que se reproduzem à margem da modernidade, uma identificação afetiva com a "vida na favela", cujo resultado era, ou poderia ser, uma certa complacência diante da miséria. A alegria que jorrava espontaneamente de cada personagem abordado na rua por Casé sugeria de alguma maneira um "amaciamento" da violência brasileira.
Mas essa cordialidade passiva, essa felicidade bovina diante de condições atrozes de vida não eram apenas um problema do programa; são um problema do Brasil.
Que o "Brasil Legal" nos fizesse ver e pensar nesse tipo de coisas não deixava de ser um de seus méritos. Em "Muvuca", essa riqueza se perdeu.
O âmbito do programa é doméstico e se esgota na exploração dos bastidores do showbiz e de seus personagens, ainda que o faça incorporando a gramática algo alternativa da nova safra de diretores da Globo, à qual pertence Mauro Mendonça Filho.
As incursões pelo Brasil são episódicas, assumem um aspecto quase pitoresco, dão apenas o molho ou o verniz do programa, mas deixaram de ser o fio da meada que era desenrolado por Casé.
O Brasil não cabe nessa "Muvuca". Ela tem a cara pasteurizada de sua mãe, a Globo. Suas emoções são baratas demais para nos comover, seus horizontes estreitos demais para que seja levado a sério.


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