São Paulo, Domingo, 08 de Agosto de 1999
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CRÍTICA

Xuxa, o fenômeno

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV

Se daqui a 20 anos Sasha tiver curiosidade de saber como andava o Brasil na virada do milênio irá encontrar farto material a respeito do showbiz numa festa ocorrida na semana passada, da qual por acaso participou.
A filha de Xuxa não tem culpa nenhuma, mas o "Reino de Sasha" é um concentrado dos aspectos mais abomináveis do país. Os marmanjos que foram lá se divertir (ou fazer negócios, o que, no caso, dá no mesmo) depositavam as prendas que levaram à princesa num cercado, protegido por três panteras, de mentira, e um crioulo seminu, de verdade.
Coube a outra rainha, a do basquete, resumir na entrada da mansão o espírito dos milionários-emergentes: "não é só porque a Xuxa vive num país de gente pobre, que não tem nada, que ela não pode fazer uma festa à sua altura". A elite local pensa assim há 500 anos. Há cinco séculos há um crioulo miserável para "tomar conta" das festas de quem "está à altura", isto é, que pertence à "sociedade". A novidade talvez esteja no fato de que a desfaçatez dos novos-ricos é explícita, escancarada, dita em frases-síntese como a de Hortência ou exibida em cores na revista "Caras", tanto faz.
Impossível não ver no "S" do bolo de Sasha a imagem do cifrão do Tio Patinhas. A barraca do McDonald's, o simulacro da Disneylândia instalado no jardim privado, a presença do paspalho do momento da Globo, Mister M, que chegou em limusine providenciada por Marlene Mattos -tudo nessa festa transpira idiotia ultraconsumista americanizada, da qual Xuxa é a maior incentivadora e beneficiária no Brasil.
Mais do que isso, Xuxa é a precursora no país da transformação da infância em negócio viabilizado pela televisão. Fez escola, mas, muito mais do que qualquer uma de suas réplicas que hoje infestam as TVs vendendo lixo associado às suas imagens, levou a estratégia a extremos. A ponto de empresariar a própria filha, o que começou a fazer antes mesmo que ela nascesse, quando anunciou a gravidez ao vivo no "Domingão do Faustão", no auge da guerra de audiência com Gugu Liberato.
Atitudes como essa, de um comercialismo sem peias, podem passar batidas ou ficar diluídas num quadro geral em que tudo se organiza em função do mercado, e no qual até o próprio Estado parece reduzido à função de gerenciador de negócios (até a educação não virou sinônimo de "educar para o mercado"?).
Assim como a festa de Sasha diz muito sobre o Brasil atual, a trajetória pública de Xuxa também é sintomática de um padrão de ascensão social calcado na sujeição feminina e nos estereótipos machistas em torno da mulher-objeto. Nesse sentido, não são Angélica e Eliana as suas herdeiras, mas antes Adriane Galisteu, Carla Perez e Tiazinha. De modelo, Xuxa logo se tornou pin-up e enveredou pela indústria pornosoft.
É um passado que a construção de sua imagem como "rainha dos baixinhos" e exemplo de mulher independente tratou de apagar. O mito de Xuxa precisa forjar um eterno presente idealizado para continuar funcionando.
Não pode sobretudo conviver com imagens como a estampada em dezembro de 1982 pela revista "Manchete", onde Xuxa, no início da carreira, aparece numa foto com Pelé. Estão numa praia; ele, de pé, sem camisa, calça branca muito justa, as mãos segurando firmes na cintura; ela, de biquíni, está ajoelhada na areia, uma das mãos em torno da coxa do rei e a cabeça recostada em seu quadril.
Pode-se desconfiar de muita coisa, mas é impossível saber quanto "amor sincero" havia ali. Como também não é possível saber quanta alegria verdadeira havia no "casal" Xuxa & Szafir quando foi anunciar sua futura filha num programa de auditório.
Sabe-se apenas que o que estava em jogo nas duas cenas, tão distantes no tempo, mas tão estranhamente próximas, não tinha nada a ver com amor, com sinceridade, com felicidade desinteressada -enfim, com esses sentimentos e instantes intransitivos que dão algum sentido à vida.
Xuxa era a mulher-objeto no primeiro momento; fez do parceiro o seu objeto descartável no segundo. Nos dois casos, pessoas passam por mercadorias. Na vida de Xuxa e em tudo do que ela participa é assim, e assim será.
Mencionei mais acima a sua "trajetória pública". Mas o que há de privado na vida de Xuxa? A solidão, da qual ela e a mídia também fizeram um produto rentável (o mito da "princesa solitária")? Não, não há diferença entre público e privado na vida de Xuxa porque toda ela está organizada como um espetáculo com fins lucrativos. É uma demência, não há dúvida. Nem Madonna, nem Michael Jackson, nenhum desses zumbis feitos de cera que vagam pelo mundo do showbiz conseguiu ir tão longe. A mãe de Sasha é mesmo um fenômeno.

A Cultura exibe na quinta-feira, às 22h30, a reprise de um "Vox Populi" gravado em 83 com Walter Clark, o homem que fez a Globo ao lado de Boni. Muita coisa caducou, o próprio formato do programa cheira a bolor populista, mas é parada obrigatória para quem se ocupa ou se interessa por história do jornalismo e da TV.


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