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CRÍTICA
Xuxa, o fenômeno
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Crítico de TV
Se daqui a 20 anos Sasha tiver
curiosidade de saber como andava o Brasil na virada do milênio
irá encontrar farto material a respeito do showbiz numa festa
ocorrida na semana passada, da
qual por acaso participou.
A filha de Xuxa não tem culpa
nenhuma, mas o "Reino de Sasha" é um concentrado dos aspectos mais abomináveis do país. Os
marmanjos que foram lá se divertir (ou fazer negócios, o que, no
caso, dá no mesmo) depositavam
as prendas que levaram à princesa
num cercado, protegido por três
panteras, de mentira, e um crioulo seminu, de verdade.
Coube a outra rainha, a do basquete, resumir na entrada da
mansão o espírito dos milionários-emergentes: "não é só porque a Xuxa vive num país de gente pobre, que não tem nada, que
ela não pode fazer uma festa à sua
altura". A elite local pensa assim
há 500 anos. Há cinco séculos há
um crioulo miserável para "tomar
conta" das festas de quem "está à
altura", isto é, que pertence à "sociedade". A novidade talvez esteja
no fato de que a desfaçatez dos
novos-ricos é explícita, escancarada, dita em frases-síntese como
a de Hortência ou exibida em cores na revista "Caras", tanto faz.
Impossível não ver no "S" do
bolo de Sasha a imagem do cifrão
do Tio Patinhas. A barraca do
McDonald's, o simulacro da Disneylândia instalado no jardim
privado, a presença do paspalho
do momento da Globo, Mister M,
que chegou em limusine providenciada por Marlene Mattos
-tudo nessa festa transpira idiotia ultraconsumista americanizada, da qual Xuxa é a maior incentivadora e beneficiária no Brasil.
Mais do que isso, Xuxa é a precursora no país da transformação
da infância em negócio viabilizado pela televisão. Fez escola, mas,
muito mais do que qualquer uma
de suas réplicas que hoje infestam
as TVs vendendo lixo associado
às suas imagens, levou a estratégia
a extremos. A ponto de empresariar a própria filha, o que começou a fazer antes mesmo que ela
nascesse, quando anunciou a gravidez ao vivo no "Domingão do
Faustão", no auge da guerra de
audiência com Gugu Liberato.
Atitudes como essa, de um comercialismo sem peias, podem
passar batidas ou ficar diluídas
num quadro geral em que tudo se
organiza em função do mercado,
e no qual até o próprio Estado parece reduzido à função de gerenciador de negócios (até a educação não virou sinônimo de "educar para o mercado"?).
Assim como a festa de Sasha diz
muito sobre o Brasil atual, a trajetória pública de Xuxa também é
sintomática de um padrão de ascensão social calcado na sujeição
feminina e nos estereótipos machistas em torno da mulher-objeto. Nesse sentido, não são Angélica e Eliana as suas herdeiras, mas
antes Adriane Galisteu, Carla Perez e Tiazinha. De modelo, Xuxa
logo se tornou pin-up e enveredou pela indústria pornosoft.
É um passado que a construção
de sua imagem como "rainha dos
baixinhos" e exemplo de mulher
independente tratou de apagar. O
mito de Xuxa precisa forjar um
eterno presente idealizado para
continuar funcionando.
Não pode sobretudo conviver
com imagens como a estampada
em dezembro de 1982 pela revista
"Manchete", onde Xuxa, no início
da carreira, aparece numa foto
com Pelé. Estão numa praia; ele,
de pé, sem camisa, calça branca
muito justa, as mãos segurando
firmes na cintura; ela, de biquíni,
está ajoelhada na areia, uma das
mãos em torno da coxa do rei e a
cabeça recostada em seu quadril.
Pode-se desconfiar de muita
coisa, mas é impossível saber
quanto "amor sincero" havia ali.
Como também não é possível saber quanta alegria verdadeira havia no "casal" Xuxa & Szafir
quando foi anunciar sua futura filha num programa de auditório.
Sabe-se apenas que o que estava
em jogo nas duas cenas, tão distantes no tempo, mas tão estranhamente próximas, não tinha
nada a ver com amor, com sinceridade, com felicidade desinteressada -enfim, com esses sentimentos e instantes intransitivos
que dão algum sentido à vida.
Xuxa era a mulher-objeto no
primeiro momento; fez do parceiro o seu objeto descartável no segundo. Nos dois casos, pessoas
passam por mercadorias. Na vida
de Xuxa e em tudo do que ela participa é assim, e assim será.
Mencionei mais acima a sua
"trajetória pública". Mas o que há
de privado na vida de Xuxa? A solidão, da qual ela e a mídia também fizeram um produto rentável
(o mito da "princesa solitária")?
Não, não há diferença entre público e privado na vida de Xuxa porque toda ela está organizada como um espetáculo com fins lucrativos. É uma demência, não há
dúvida. Nem Madonna, nem Michael Jackson, nenhum desses
zumbis feitos de cera que vagam
pelo mundo do showbiz conseguiu ir tão longe. A mãe de Sasha é
mesmo um fenômeno.
A Cultura exibe na quinta-feira, às
22h30, a reprise de um "Vox Populi" gravado em 83 com Walter
Clark, o homem que fez a Globo
ao lado de Boni. Muita coisa caducou, o próprio formato do programa cheira a bolor populista,
mas é parada obrigatória para
quem se ocupa ou se interessa por
história do jornalismo e da TV.
E-mail: fbsi@uol.com.br
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