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CRÍTICA
Ensaio Racional
MARCIO SATTIN
MUITO já se falou sobre a excelência do programa
"Ensaio", misto de entrevista e apresentação musical concebido e dirigido por Fernando Faro e
exibido às terças-feiras na TV Cultura. Mas o verdadeiro marco que foi a presença do grupo de rap Racionais
MC's, no último dia 28, parece não ter despertado a atenção
devida por parte da mídia.
O programa merece os elogios que recebe, e sua longevidade é prova eloquente disso. Exibida há poucas semanas, a reprise de um programa com Nara Leão, gravado no início dos
anos 70, pôde mostrar com clareza algumas dessas qualidades:
o momento do país, o estado da
música popular, a ressaca do Cinema Novo, um Rio de Janeiro
já com saudade de uma delicadeza perdida, de um passado recente que talvez só tenha existido na memória afetiva dos participantes, enfim, estava tudo
presente ali, filtrado pelas canções e pela presença miúda e espontânea de Nara, acompanhada apenas de um violão e do famoso entrevistador "oculto".
Se o programa com os Racionais MC's for exibido daqui a 30
anos, como aconteceu com o de Nara, não é difícil perceber
que guardará o mesmo potencial revelador e a mesma marca
duradoura. Num veículo cujo traço principal é a transitoriedade, onde o exibido hoje é esquecido ou inexistente amanhã,
não é pouca coisa.
Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, os quatro membros do grupo, são conhecidos por sua aversão a entrevistas e
pela recusa em participar de programas televisivos de divulgação. No entanto, enquadrados em big close-up pela lente de
Faro e imersos na escuridão do estúdio, tem-se a impressão
de que o formato consagrado do programa, sua fórmula simples de destacar o entrevistado com o mínimo de recursos cênicos, esteve esses anos todos à espera do grupo para poder
atingir sua força máxima de expressão.
Os rostos fechados de Brown e seus companheiros, reforçados pelas perguntas inaudíveis do entrevistador e pela ausência de instrumentos (só microfones empunhados e os picapes
do D.J.), preenchem a tela toda com uma disposição irada e
incomum para contar suas histórias, não porque elas sejam
peculiares ou curiosas, e sim porque são estranhamente familiares, como se anunciassem, a contragosto, nossa transformação de telespectadores em testemunhas de algo que sempre esteve aí, ao nosso lado.
A partir dos depoimentos de
cada um deles, os anos de formação, as amizades no convívio musical, o início do movimento de rappers e funkeiros
na estação São Bento do metrô,
no início da década de 80, são
trazidos nas entrelinhas os elementos que se tornaram habituais a qualquer morador de
uma cidade grande como São
Paulo: a segregação da periferia,
a violência rotineira e testemunhada, o papel dúbio da polícia,
a influência americana nos costumes e atitudes, a desagregação familiar, a presença norteadora da droga etc.
O que os torna o acontecimento musical mais relevante dos
últimos anos é justamente essa capacidade de sintetizar, num
punhado de canções acuradas, a pouca sutileza na construção
de um descaso público e privado, que produziu nas últimas
décadas uma massa de excluídos e cidadãos de segunda classe. A mesma rudeza, agora com sinal invertido, dá o troco e
assombra os "mais favorecidos" em semáforos mal iluminados e em letras agressivas, pondo às claras o conflito de uma
cidade, de um país cujo traço inequívoco é a desigualdade que
ostenta a si mesma como troféu. Precisamos de mais Racionais, não de menos.
Marcio Sattin, 39, é doutorando em filosofia alemã pela FFLCH-USP e pesquisador do grupo de Lógica e Ontologia do Cebrap.
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