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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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CRÍTICA

Ensaio Racional

MARCIO SATTIN

MUITO já se falou sobre a excelência do programa "Ensaio", misto de entrevista e apresentação musical concebido e dirigido por Fernando Faro e exibido às terças-feiras na TV Cultura. Mas o verdadeiro marco que foi a presença do grupo de rap Racionais MC's, no último dia 28, parece não ter despertado a atenção devida por parte da mídia.
O programa merece os elogios que recebe, e sua longevidade é prova eloquente disso. Exibida há poucas semanas, a reprise de um programa com Nara Leão, gravado no início dos anos 70, pôde mostrar com clareza algumas dessas qualidades: o momento do país, o estado da música popular, a ressaca do Cinema Novo, um Rio de Janeiro já com saudade de uma delicadeza perdida, de um passado recente que talvez só tenha existido na memória afetiva dos participantes, enfim, estava tudo presente ali, filtrado pelas canções e pela presença miúda e espontânea de Nara, acompanhada apenas de um violão e do famoso entrevistador "oculto".
Se o programa com os Racionais MC's for exibido daqui a 30 anos, como aconteceu com o de Nara, não é difícil perceber que guardará o mesmo potencial revelador e a mesma marca duradoura. Num veículo cujo traço principal é a transitoriedade, onde o exibido hoje é esquecido ou inexistente amanhã, não é pouca coisa.
Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, os quatro membros do grupo, são conhecidos por sua aversão a entrevistas e pela recusa em participar de programas televisivos de divulgação. No entanto, enquadrados em big close-up pela lente de Faro e imersos na escuridão do estúdio, tem-se a impressão de que o formato consagrado do programa, sua fórmula simples de destacar o entrevistado com o mínimo de recursos cênicos, esteve esses anos todos à espera do grupo para poder atingir sua força máxima de expressão.
Os rostos fechados de Brown e seus companheiros, reforçados pelas perguntas inaudíveis do entrevistador e pela ausência de instrumentos (só microfones empunhados e os picapes do D.J.), preenchem a tela toda com uma disposição irada e incomum para contar suas histórias, não porque elas sejam peculiares ou curiosas, e sim porque são estranhamente familiares, como se anunciassem, a contragosto, nossa transformação de telespectadores em testemunhas de algo que sempre esteve aí, ao nosso lado.
A partir dos depoimentos de cada um deles, os anos de formação, as amizades no convívio musical, o início do movimento de rappers e funkeiros na estação São Bento do metrô, no início da década de 80, são trazidos nas entrelinhas os elementos que se tornaram habituais a qualquer morador de uma cidade grande como São Paulo: a segregação da periferia, a violência rotineira e testemunhada, o papel dúbio da polícia, a influência americana nos costumes e atitudes, a desagregação familiar, a presença norteadora da droga etc.
O que os torna o acontecimento musical mais relevante dos últimos anos é justamente essa capacidade de sintetizar, num punhado de canções acuradas, a pouca sutileza na construção de um descaso público e privado, que produziu nas últimas décadas uma massa de excluídos e cidadãos de segunda classe. A mesma rudeza, agora com sinal invertido, dá o troco e assombra os "mais favorecidos" em semáforos mal iluminados e em letras agressivas, pondo às claras o conflito de uma cidade, de um país cujo traço inequívoco é a desigualdade que ostenta a si mesma como troféu. Precisamos de mais Racionais, não de menos.


Marcio Sattin, 39, é doutorando em filosofia alemã pela FFLCH-USP e pesquisador do grupo de Lógica e Ontologia do Cebrap.


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