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CRÍTICA
Os últimos intelectuais
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
É de Marilena Chaui o
título mais do que merecido de musa da filosofia
brasileira. Ninguém mais
seria capaz de, como ela,
resumir para o público
leigo, com tanto brilho e
didatismo, em escassos
minutos e diante das garras intimidadoras da TV,
quais são os fundamentos da metafísica de um
filósofo remoto como
Baruch Espinosa, cuja
doutrina é tida por muitos como impenetrável.
Quem assistiu ao programa "Roda Viva" da
última segunda, com
Chaui no centro depois
de um exílio voluntário
do debate público que já
durava bons seis anos,
deve certamente ter se
encantado com a desenvoltura e a presença incomuns da professora.
Não sei o que está esperando a TV Cultura que
ainda não convidou
Chaui a ministrar um
curso de introdução à filosofia com aulas semanais. Bastaria uma ou
duas câmeras na mão, já
que Chaui é um azougue
e tem uma enciclopédia
de idéias na cabeça. Seria
certamente um sucesso.
O público, tão carente de
programas de qualidade,
só teria a ganhar.
Para quem já conhecia
Chaui, no entanto, e esperava do "Roda Viva"
alguma coisa além da sua
conhecida competência
intelectual e pedagógica,
o programa foi uma espécie de mergulho bastante incômodo no túnel
do tempo. De musa da filosofia, Chaui se transformou em Carolina, a
musa de Chico Buarque.
Pelo menos dois terços
do programa poderiam
ter sido exibidos há 10 ou
15 anos, e com mais propriedade. Devem, de todo modo, ter falado muito à imaginação e á memória de pelo menos
duas ou três gerações de
estudantes universitários
fizeram o básico de seu
aprendizado de esquerda
entre meados dos anos 70
e o final dos 80 pelas
mãos de Chaui.
Foi através dela que o
tema da democracia, tido
como formalidade burguesa pela ortodoxia,
passou a ocupar a linha
de frente da agenda política e intelectual de uma
nova esquerda que, dizia-se, precisava inventar
a si mesma.
Foi também através dela que os ecos da microfísica do poder de Michel
Foucault chegaram ao
Brasil embalados no
mesmo pacote da crítica
da "servidão voluntária", fazendo com que
parte da esquerda transformasse o combate à ditadura numa discussão
mais ampla e capilarizada sobre as várias heranças de uma sociedade
violenta e autoritária.
Enquanto a ala da chamada sociedade civil liderada por Fernando
Henrique ensaiava os
primeiros botes rumo ao
poder, no início dos anos
80, Chaui falava sobretudo em "desocupá-lo".
Direitos, cidadania, repressão sexual e discurso
competente eram expressões-chave que iam compondo, a partir da influência de Chaui, a
agenda de uma esquerda
alternativa que parecia
mais preocupada em organizar a sociedade contra o Estado do que em
ocupá-lo, como aquela
altura já fazia FHC e sua
turma, aprendizes de
Maquiavel durante o período de ouro do governo Montoro.
É nessa época, início
dos anos 80, que a filosofia, com Chaui à frente,
deixa o circuito restrito
da universidade e ingressa sem maiores mediações, como já observou o
filósofo Paulo Arantes,
no repertório da indústria cultural.
Chaui passa então a ser
requisitada país afora como se fosse um astro da
cultura pop. Sempre impecáveis e em nada concessivas, suas aulas eram
no entanto disputadas
como shows de rock
-verdadeiras aglomerações de estudantes, procurando ávidos por algum fundamento ou pretexto para aspirações difusamente oposicionistas
e cada vez menos políticas. É dessa demanda coletiva absorvida pela indústria do entretenimento que nasceriam a seguir
os cursos sobre o
"olhar", a "paixão", o
"imaginário" etc.,
transformados depois
em sucessos editoriais.
O "Roda Viva" com
Chaui nos devolveu, como num filme vertiginoso em flash back, a esses
anos em que a intelectualidade de esquerda no
Brasil animou a cena pública mas foi consumida
pela marcha da história e
acabou perdendo o bonde. Uma parte dela capitulou, abdicou de pensar
para se integrar logo ao
establishment -e isso
desde a Nova República,
antes do namoro com
Collor e da eleição de 94.
A outra, na qual brilha
e a estrela de Chaui, parece ainda parada no tempo, em algum lugar remoto entre os anos da
distensão democrática e
a derrota de Lula em 89.
A filósofa, pensando no
colapso dos regimes do
Leste, diz no "Roda Viva" que é preciso reinventar a esquerda. Mas
não era essa a sua palavra
de ordem desde os anos
70? Não seria ela própria
o início e o fim dessa esquerda reinventada?
Concluo com uma provocação daquele que é o
grande intérprete do
ajuste e do desajuste intelectual brasileiro, Paulo
Arantes: "Os apocalípticos parecem integrados
até o pescoço, e os integrados vez por outra cometem desatinos apocalípticos. No centro, uma
Abertura bem sucedida,
que, não cumprindo o
prometido, melou tudo". Estão aí para prová-lo FHC e Marilena
Chaui, o intelectual traidor e a intelectual vitoriosa da esquerda que virou suco.
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