São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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CRÍTICA

Os últimos intelectuais

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

É de Marilena Chaui o título mais do que merecido de musa da filosofia brasileira. Ninguém mais seria capaz de, como ela, resumir para o público leigo, com tanto brilho e didatismo, em escassos minutos e diante das garras intimidadoras da TV, quais são os fundamentos da metafísica de um filósofo remoto como Baruch Espinosa, cuja doutrina é tida por muitos como impenetrável.
Quem assistiu ao programa "Roda Viva" da última segunda, com Chaui no centro depois de um exílio voluntário do debate público que já durava bons seis anos, deve certamente ter se encantado com a desenvoltura e a presença incomuns da professora.
Não sei o que está esperando a TV Cultura que ainda não convidou Chaui a ministrar um curso de introdução à filosofia com aulas semanais. Bastaria uma ou duas câmeras na mão, já que Chaui é um azougue e tem uma enciclopédia de idéias na cabeça. Seria certamente um sucesso. O público, tão carente de programas de qualidade, só teria a ganhar.
Para quem já conhecia Chaui, no entanto, e esperava do "Roda Viva" alguma coisa além da sua conhecida competência intelectual e pedagógica, o programa foi uma espécie de mergulho bastante incômodo no túnel do tempo. De musa da filosofia, Chaui se transformou em Carolina, a musa de Chico Buarque.
Pelo menos dois terços do programa poderiam ter sido exibidos há 10 ou 15 anos, e com mais propriedade. Devem, de todo modo, ter falado muito à imaginação e á memória de pelo menos duas ou três gerações de estudantes universitários fizeram o básico de seu aprendizado de esquerda entre meados dos anos 70 e o final dos 80 pelas mãos de Chaui.
Foi através dela que o tema da democracia, tido como formalidade burguesa pela ortodoxia, passou a ocupar a linha de frente da agenda política e intelectual de uma nova esquerda que, dizia-se, precisava inventar a si mesma.
Foi também através dela que os ecos da microfísica do poder de Michel Foucault chegaram ao Brasil embalados no mesmo pacote da crítica da "servidão voluntária", fazendo com que parte da esquerda transformasse o combate à ditadura numa discussão mais ampla e capilarizada sobre as várias heranças de uma sociedade violenta e autoritária. Enquanto a ala da chamada sociedade civil liderada por Fernando Henrique ensaiava os primeiros botes rumo ao poder, no início dos anos 80, Chaui falava sobretudo em "desocupá-lo".
Direitos, cidadania, repressão sexual e discurso competente eram expressões-chave que iam compondo, a partir da influência de Chaui, a agenda de uma esquerda alternativa que parecia mais preocupada em organizar a sociedade contra o Estado do que em ocupá-lo, como aquela altura já fazia FHC e sua turma, aprendizes de Maquiavel durante o período de ouro do governo Montoro.
É nessa época, início dos anos 80, que a filosofia, com Chaui à frente, deixa o circuito restrito da universidade e ingressa sem maiores mediações, como já observou o filósofo Paulo Arantes, no repertório da indústria cultural.
Chaui passa então a ser requisitada país afora como se fosse um astro da cultura pop. Sempre impecáveis e em nada concessivas, suas aulas eram no entanto disputadas como shows de rock -verdadeiras aglomerações de estudantes, procurando ávidos por algum fundamento ou pretexto para aspirações difusamente oposicionistas e cada vez menos políticas. É dessa demanda coletiva absorvida pela indústria do entretenimento que nasceriam a seguir os cursos sobre o "olhar", a "paixão", o "imaginário" etc., transformados depois em sucessos editoriais.
O "Roda Viva" com Chaui nos devolveu, como num filme vertiginoso em flash back, a esses anos em que a intelectualidade de esquerda no Brasil animou a cena pública mas foi consumida pela marcha da história e acabou perdendo o bonde. Uma parte dela capitulou, abdicou de pensar para se integrar logo ao establishment -e isso desde a Nova República, antes do namoro com Collor e da eleição de 94.
A outra, na qual brilha e a estrela de Chaui, parece ainda parada no tempo, em algum lugar remoto entre os anos da distensão democrática e a derrota de Lula em 89.
A filósofa, pensando no colapso dos regimes do Leste, diz no "Roda Viva" que é preciso reinventar a esquerda. Mas não era essa a sua palavra de ordem desde os anos 70? Não seria ela própria o início e o fim dessa esquerda reinventada?
Concluo com uma provocação daquele que é o grande intérprete do ajuste e do desajuste intelectual brasileiro, Paulo Arantes: "Os apocalípticos parecem integrados até o pescoço, e os integrados vez por outra cometem desatinos apocalípticos. No centro, uma Abertura bem sucedida, que, não cumprindo o prometido, melou tudo". Estão aí para prová-lo FHC e Marilena Chaui, o intelectual traidor e a intelectual vitoriosa da esquerda que virou suco.


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